Aqui viemos conhecer uma artista que está conhecendo a si mesma.
Mais de que um jogo de palavras ou um exercício de reflexividade, a afirmação aponta para um aspecto central à obra de Andy Villela.
Como elucidou Vilém Flusser ao fazer ver que “um sapateiro não faz apenas sapatos, mas também, por meio de sua atividade, faz de si mesmo um sapateiro”, para Andy, pintar não é resultado de sua atividade enquanto pintora, mas sua forma de fazer-se artista.
Desviando-se das expectativas profissionais oriundas de uma formação como publicitária e de várias maneiras invertendo a lógica de produção da propaganda, temos que Andy Villela é fruto das pinturas que, sendo por ela realizadas, acima de tudo a têm fabricado como artista ao longo dos últimos anos.
Desse modo, como o espaço-tempo de sua autopoiese, a obra de Andy tem sido uma prática de investigação de processos de criação. Cada um de seus recentes trabalhos é um laboratório de estratégias técnicas, materiais, formais e semânticas que não servem somente à sua autoprodução enquanto obras de arte, mas, principalmente, à fabricação de uma poética que tem tomado a própria criação como questão, como matéria.
Em que pese que tenha sido tema central na história da arte ocidental pela implicação desta com a Igreja e as monarquias – cujos poderes eram fabulados como oriundos de Deus enquanto Pantocrator, o Grande Criador –, pouco interessam a Andy as tais abordagens teológicas, metafísicas ou míticas da criação.
Noutra direção, é sobremaneira a morfogênese que a tem instigado, provocando uma convergência tão temática quanto estética entre processos de desenvolvimento de formas que se dão tanto na biologia, na cosmologia e na ficcionalização de corpos igualmente constituídos por células, poeira cósmica, tinta.
A profusão técnica de suas pinturas recentes – que combinam acrílica, estêncil, bastão oleoso, spray e fogo, dentre outros materiais – é apenas uma das camadas dessa pesquisa que, no encalço dos processos de formação e transmutação das coisas e dos corpos, toma a química e o tempo como territórios de experimentação. Não à toa, esta exposição reúne obras cujos títulos – como Crateras, buracos e espaços, Sptunik I ou Nebulosa – apontam para a vastidão desta pesquisa.
Enquanto a artista tem transicionado por entre processos de hormonização e performatividades de gênero, não é à dimensão privada de seu corpo, mas à discursividade pública de sua obra que Andy Villela tem reservado a responsabilidade de endereçar socialmente o direito à contínua recriação das formas, ou seja: a ampliação dos limites da morfogênese para além do período embrionário da vida, estendendo-a ao infinito.
É assim que, como experimentado no processo de criação, bem como aludido pelo título da maior obra da exposição, Embrião, no espaço-tempo de cada pintura, Andy soma-se à morfogênese dos corpos. Sabe estar performando, na redução do plano pictórico, a própria expansão do universo.
Vem daí seu compromisso não de eminentemente “pintar imagens”, mas principalmente lançar-se a processos de criação cujas agências se querem distribuídas por entre as materialidades e os acidentes de um fazer que não se deixa planejar, que desafia antecipações e que pretende sabotar suas ânsias de controle. Pinturas que não são pensadas como produtos do fazer da artista, mas que, ao contrário, são capazes de, em sua morfogênese, continuamente formar e parir sua própria autora.
Como testemunha desse processo, vi a maioria das obras agora reunidas em Nebulosa se transformarem de tal maneira que poderia dizer que algumas delas renasceram um punhado de vezes no ateliê de Andy, assumindo novos desenhos, inaugurando outros campos pictóricos, adquirindo palhetas alternativas, dentre outras transmutações.
Às limitações transformacionais da tinta acrílica, Villela respondeu com a convocação de outras técnicas, encarando corajosamente a difícil convivência entre diferentes materialidades num mesmo plano, como em A Queda. Ao risco da hegemonia de um tema ou imagem, a artista reagiu com uma política de acúmulo, sobreposição e deformação dos signos, como performa a obra que intitula a mostra. À reiteração de alguns gestos, rebateu com a variação de escalas e sua inevitável demanda por outros movimentos do corpo e, com eles, gestualidades alternativas – tal qual dá a ver o contraste entre Consideração e Évanoussaint.
Como enunciam Ópio ou Embrião, pinturas que fazem menção às papoulas e à ketamina, tal processo criador pode ser disfórico para subjetividades que, como as deste tempo, têm sido forjadas na imediaticidade do neoliberalismo em sua tentativa de absoluta comodificação da vida.
Pintar alusões a substâncias que momentaneamente anestesiam nossas ansiedades ou sensibilidades é, portanto, uma pequena pista do quão angustiante pode ser a aposta na morfogênese: a confiança na transformação enquanto uma prática imanente à vida, aceitando, como anota Andy numa folha de caderno, “a radicalidade do que não faz sentido” – ainda que apenas por um instante; mesmo que por muito tempo.
Que abracemos a nebulosidade de nossas contínuas recriações é ao que nos convida a primeira exposição individual de Andy Villela na Nonada, cujas obras se formaram através de aventuras morfogênicas e, como tal, podem nos mobilizar percepções, reações ou interpretações também instáveis e mutáveis; quiçá angustiantes.
Angústia que a Andy Villela interessa profundamente enquanto espaço-tempo para a dúvida e para a inquietação, motores do movimento e das transformações. Afinal, como ensinou Lacan em seu seminário sobre a angústia, “nada é mais instável do que o conceito de cura. (…) Todos os desvios são possíveis a partir da angústia. (…) O que se evita é aquilo que, na angústia, assemelha-se à certeza assustadora. (…) A angústia, dentre todos os sinais, é aquele que não engana.”
Clarissa Diniz