Exposições

Nada mais disse

Raphael Medeiros
Raphael Medeiros
09/12/23 a 25/05/24

“Nada mais disse” é um filme que ganha forma na primeira exposição individual de Raphael Medeiros, que acontece no Galpão da Nonada ZN.

Medeiros entrega um trabalho híbrido que borra as definições convencionais de um filme. E nessa instalação cinematográfica composta por pinturas, esculturas e um roteiro, o artista faz anotações sobre a linguagem do cinema para além da moldura do plano. E para visitar esse set de filmagem é indicado que o espectador venha quando o sol se pôr, a noite traz a condição ideal de luz para a instalação.

Roteiro:
NADA MAIS DISSE
Raphael Medeiros
(essa é uma obra de ficção)

TELA PRETA
“São Gonçalo, 20 de agosto de 1990. Uma rua do Coelho acorda ao som de 3 bombinhas. Acontece muita festa junina fora de época.”

CENA 01 – interna noite – galpão Nonada
Com a visão da câmera na altura do chão, assistimos duas pernas esticadas que parecem vir de fora do quadro. E como de costume, toda vez que o plano não suporta o assunto a moldura impõe seu limite. E onde se respeita moldura, maquinaria e câmera são só ferramentas. Aqui ela corta esse corpo bem na altura dos joelhos.
“Mesmo atento é difícil enxergar alguns assuntos. Decupagem, roteiro, plano de filmagem e ordem do dia te fazem olhar tanto pra tela, que tu acaba cego.”

CENA 02 – externa dia – depósito de bananas
Tela cheia e amarela. Conforme a câmera abre o plano, vemos quilos e mais quilos de bananas. E, bem ali, em meio a bananas, um jovem avista pernas.
“Respondeu que estava trabalhando no depósito de bananas quando escutou barulho de bombinhas, que sua mãe sempre lhe disse para não se meter nessas coisas, que só percebeu o acontecido quando viu as pernas caídas na calçada, que escutou o réu cobrando dinheiro da vítima, e nada mais disse”

CENA 03 – interna noite – galpão Nonada
“operária luz do fetiche
maquinaria e linguagem
fabulação, ficção, ansiedade
minerando mentira vendo miragem
ela é minha marchand
crítica, curadora, galerista”

CENA 04 – externa dia – rua de terra
Em sequência, vemos muitas pernas passando pela câmera, cortes secos entre tremedeiras e planos parados, vemos um par de pernas, ora parado, ora correndo, depois dois, depois um de novo, depois uns vinte, depois um na horizontal.
“Diz que por volta das nove escutou três estampidos, que ao chegar ao bar viu a vítima caída com as pernas para fora do estabelecimento, que o réu havia evadido o local com sua arma em punho apontando para as pessoas e dizendo que aqueles que falassem algo teriam o mesmo destino, e nada mais disse”

CENA 05 – interna noite – galpão Nonada
“Raphael Medeiros diz que é cineasta e artista, que também é um mentiroso, que toda visita de locação é um mergulho estético, que todos na equipe de um filme são atores, que todos os objetos de maquinaria e luz são obras e que todo set é uma performance, que um roteiro ou uma versão processual são semelhantes coletâneas de indícios de muitas realidades já ficcionadas, que tornou-se contador de histórias mesmo não lembrando do barulho das bombinhas, e nada mais disse”

CENA 06 – interna dia – quarto de um neném
Um raio de sol de inverno atinge um móbile com ursinhos pendurados. Contemplando sua neném em silêncio, uma mãe troca fraldas.
“Conta que no dia do fato estava dentro de casa trocando as fraldas de sua neném, quando ouviu estampidos, primeiro pensando que fossem bombinhas, que avistou as pernas para fora do bar, que viu o menor agarrado ao pescoço da vítima, que deu banho no menor para lavar o sangue que estava sobre ele, e nada mais disse”

CENA 07 – externa dia – ônibus
Homem apoia a cabeça na janela do ônibus, e na reverberação dos raios de sol da manhã, a estrada que liga São Gonçalo a Niterói parece um rio por onde seus olhos navegam em total calmaria.
“O réu, cabo reformado da Marinha, diz que a vítima tinha um comércio em um imóvel que era de sua propriedade, que desconhece o fato da vítima ter que pagar uma taxa diária pelo local, que o depoente não estava no local na hora do crime, que já teve um revólver, que após ser reformado do serviço militar estabeleceu-se em São Gonçalo, que soube que a vítima estava com o filho no colo quando foi atingida, e nada mais disse”

CENA 08 – interna noite – galpão Nonada
Através do teatro de sombras estáticas, imagens de repertório pessoal do artista são projetadas em objetos-bastidor que dialogam com mentiras, versões e fabulações que estão para além da moldura do plano. Acompanhamos a dissipação de imagens oníricas, que ficcionam sobre memórias apagadas e jogam luz na própria linguagem cinematográfica.

CENA 09 – interna dia – fábrica de mármore
Muita poeira, textura de mármore e máquinas barulhentas. Uma gota de sangue pega carona no carro do vizinho, e apressados, vizinho e gota, cantam pneu nas curvas. Ao chegarem na fábrica, a gota corre para tocar a campainha, o vizinho então pede para chamar a moça da contabilidade, esse é o desejo da gota, mas, como ela não fala, ficou a cabo dele fazer o comunicado. Ainda trêmulo, o homem entrega a gota para a contadora.
“Diz que era casada com a vítima, que estava no trabalho quando o proprietário do depósito de bananas veio informar a depoente que seu marido havia sofrido um assalto, e nada mais disse”