Exposições

Fragmento II: envoltórios reversíveis, ou além do que o horizonte circunda

Iah Bahia, Loren Minzu, Siwaju
08/07 a 12/08/2023

Segunda parte do processo de ocupação e criação dos artistes Iah Bahia, Loren Minzú, Siwaju Lima na Nonada ZN e Projeto Fábrica, espaço da antiga fábrica de lingeries Marilan, na Penha, Rio de Janeiro. A exposição teve curadoria de Clarissa Diniz e intitulada fragmento II: envoltórios reversíveis, ou além do que o horizonte circunda, propondo ser um desdobramento da mostra anterior, fragmento I: vento pórtico.

Segundo a curadora “Envoltórios reversíveis, ou além do que o horizonte circunda adensa VENTO PÓRTICO, atiçando outras perspectivas sobre as obras de Siwaju, Loren Minzú e Iah Bahia. Agora gozando de uma mais alargada convivência entre si e com os espaços, memórias e sujeitos do Projeto Fábrica, as artistas constroem alianças que não se esgotam neste campo de batalha e seus horizontes.”
Fragmento II: envoltórios reversíveis, ou além do que o horizonte circunda

Subir no ponto mais alto da antiga fábrica Marilan, o telhado de seu prédio central, não serve apenas a uma prospecção paisagística. Ainda que de lá o Rio de Janeiro se revele numa horizontalidade incomum aos panoramas clássicos da cidade – tão identificados aos cumes de suas montanhas –, o pequeno espaço daquela laje pode ser mais um ponto de presença do que um ponto de mirada.

Assim, quando Loren Minzú sobe naquele telhado do bairro da Penha em cenas de corpo e segredo IV, o faz não para revelar uma vista da cidade, mas para produzir um espaço-tempo que, uma vez ocupado, faz o corpo, a metrópole e o cosmos se experimentarem noutros regimes de relação. Posicionado no ângulo da fábrica com o horizonte do mundo, para além de ser seu observador, o artista se coloca como uma espécie de instrumento de comunicação e contato entre seus planos e forças. Para tanto, como nos demais trabalhos da trilogia, convoca um tentaculoso galho para ampliar o campo tátil entre o que é pele e o que é ar, catalisando seus trânsitos e diálogos.

Contudo, neste que se tornou o quarto gesto do conjunto de movimentos que vem desenvolvendo desde 2020, por um breve segundo Minzú também prescinde daquele dispositivo vegetal e, usando seus braços e mãos em posição de mudra, faz de seu próprio corpo a continuidade entre o céu e a terra, gesto de conexão que encontra um duplo na instalação de bambus substância-miragem em sua triangulação entre parede e piso. A dimensão fugidia daquela cena, uma aparição por entre os mais caudalosos minutos do vídeo, termina por transformar a figura de seu corpo-mudra numa espécie de miração, uma imagem cuja espectralidade nos captura, nos enreda em seus mistérios.

A cena remete a um interesse vertebral na obra de Minzú – o abismo –, um espaço-tempo de voragem que também cativa as obras de Iah Bahia e Siwaju, nas quais as dobras, as curvas e os buracos performam espacialidades abismáticas que não oferecem horizontes que possam nos servir como linhas de estabilidade ou de fixidez. Noutra direção, nos jogam em movimentos de mistério e temor, fascínio e desassossego.

Furor abismático que não se restringe a investigações topológicas, mas acontece também na cor, na textura, na luz. Assim, se a obra de Siwaju tem sido marcada por uma artesania da oxidação que banha suas esculturas com um tempo-cor ímpar, em fragmento II podemos ver a opacidade adquirir protagonismo na pesquisa de Loren Minzú como forma de aproximar escultura e imagem, fisicalidade e miração. Ou, ainda, testemunhar os modos como as esculturas recentes de Iah Bahia seguem no rastro dos exercícios de corte e dobra presentes nas frequências, suas obras em papel, mas agora combinando-os às cores das malhas encontradas pela artista na Marilan e ao embaçamento do cimento em sua singular capacidade de absorção da luz.

Na sequência de VENTO PÓRTICO, que se pensou como um campo de escuta imantado por obras cujos vazios dialogam com os sussurros e os enunciados dos ventos, neste fragmento II: envoltórios reversíveis, ou além do que o horizonte circunda, nos propomos a investigar as dimensões mais aguerridas das formas que têm identificado os trabalhos de Minzú, Bahia e Siwaju.

Ao ocupar quatro ambientes da fábrica, as obras tocam o ar que as envolve com um repertório matérico e formal que conjuga pontas, pesos, arestas, farpas, flechas, lâminas. Exploram os cantos, os tetos e os rasgos de paredes e pisos como locais para a proposição de abismos que revertem encantamentos em ameaça and back again. Ao fazê-lo, Fragmento II sublinha que nem tudo o que envolve é abraço.

No vídeo Arma fria, Iah Bahia segura uma pedra de gelo. Na incômoda transferência de calor entre suas mãos e a água em estado sólido, molda uma quase pistola que se desfaz em gotas enquanto torna dormente a empunhadura performada pela artista. A obra insiste precisamente neste vórtice de corpos, espaços e tempos no qual testemunhamos a transformação das existências. Se de um lado o gesto de Iah é o que molda a arma, é ele também que a dissolve enquanto sofre a anestesia do gelo.

Com Bahia, temos que tocar pode ser violar. Não à toa, em fragmento II a artista reúne trabalhos que circundam e protegem o corpo e suas tantas partes, aludindo a armaduras, casulos, escudos e outros envoltórios que se fazem pesados, impregnados de óleo ou recobertos por texturas incômodas à presença e ao toque, como o concreto em suas rugosidades.

Contudo, como acontece nas instalações e esculturas de Siwaju e Loren, as obras de Iah não se lançam ao ataque, não invadem o espaço da alteridade. Como capoeira, se defendem ao devolver a força da investidura do outro contra ele mesmo, tirando partido de materialidades refratárias, resistentes a toques invasivos, não pactuados. Desse modo, o projeto ético-estético que tem interessado à artista em sua preferência por lidar com materialidades já existentes – muitas vezes em estado de abandono por entre ferros velhos ou caçambas de lixo – demonstra outra de suas forças políticas.

Bahia faz ver que grande parte dos enfrentamentos e lutas ocorrem fora das zonas de conflito, distantes da espetacularização da violência ou da dimensão cinematográfica da guerra. Em sua obra, somar-se à força estética do que já existe é também ocupar e fortalecer as trincheiras e os escapes que já estão postos e que, como circunscreve em Rotas de fuga, têm sido ancestralmente concebidas na discrição das rotinas, no sigilo dos percursos diariamente repetidos, por entre aqueles que se camuflam na anonimidade socialmente imposta, na incendiária mudez daquilo que é considerado improdutivo, velho, descartável.

Por sua vez, a cada vez mais complexa prática de Siwaju em colecionar metais despojados de funcionalidades para com eles erigir sua obra encontra, na fricção com a ideia de armadilha, uma intensa voltagem. Se é inegável que suas pontas e farpas metálicas poderiam conduzir nossos olhares à presunção de se tratarem de armas escultóricas, a atenção às formas de instalação das peças faz ver que à artista pouco entusiasma o entendimento de que suas obras sejam armamentos. Ao contrário, suas construções costumam sabotar as premissas da ergonomia bélica: Siwaju não faz próteses para o corpo, não faz dispositivos a serem sustentados por mãos ou ombros.

Suas obras são coisas – corpos-máquinas – em si mesmas. Traindo a obsolescência programada do capitalismo, escaparam das linhas de produção industrial da vida e, com a fuga, conquistaram o direito a existir ao se equilibrarem e fincarem presença a despeito do uso (ou da falta de uso) que lhes são atribuídos. São máquinas distópicas cuja funcionalidade incide sobre outras agências.

Assim, emancipando-se ontológica, formal e politicamente da sina de serem tanto dejetos quanto objetos, suas esculturas se filiam eminentemente às preocupações das instalações, revertendo as intencionalidades das armas em armadilhas ao tensionar o espaço e imantá-lo com uma espécie de disposição ao enfrentamento – seja de ataque, seja de defesa – que prescinde da manipulação humana para que sejam ativadas. Como alude o nome dado ao corpo de trabalhos recentes de Siwaju, são Satélites: estão acontecendo mesmo quando nada parece acontecer.

Nessa direção estão os buracos-negros instalados no chão e na parede do galpão da Marilan neste fragmento II, obras que agem no, com e como espaço. Escavadas nas superfícies arquitetônicas, somam-se ao imaginário maquínico de sua poética com suas antenas e estruturas metálicas. Mas, em especial, reforçam a presença da ideia de vórtice em sua obra, na qual círculos e outros movimentos espiralados nos advertem de sua aproximação formal e ontológica a redemoinhos, bocas e outras concavidades capazes de devorar ou expelir existências e temporalidades.

Na convivência com os Antídotos e com Armour – esculturas-armaduras de Iah Bahia – e com A Velocidade/Força Telúrica, instalação de Loren Minzú que reúne e iça estacas da fábrica transformadas em flechas voltadas à terra, Experimento-buraco negro #1, #2 e #3 formam, no galpão da Marilan, um campo de forças que acolhe tensões e temores. Há um sopro tenso no ar; sentimos o tempo a nos espreitar; as coisas e os corpos estão na iminência de se mover e de talvez reverter suas posicionalidades de defesa, de ataque ou de estratégica espera.

Envoltórios reversíveis, ou além do que o horizonte circunda adensa VENTO PÓRTICO, atiçando outras perspectivas sobre as obras de Siwaju, Loren Minzú e Iah Bahia. Agora gozando de uma mais alargada convivência entre si e com os espaços, memórias e sujeitos do Projeto Fábrica, as artistas constroem alianças que não se esgotam neste campo de batalha e seus horizontes.

Se há quem confirme que as maiores guerras são precisamente aquelas que ocorrem no plano do invisível, não podemos perder de vista a desconfiança de que as táticas para que diante dela permaneçamos vivas igualmente não se permitirão exibir.