Exposições

Firulas

Andre Barion
18/11/23 a 17/01/24

André aborda o exagero ornamental sem culpa: seus objetos são engenhosamente decorativos e as volutas, rosáceas, rendas e recortes que povoam suas superfícies são mais participantes empolgadas de um código genético mutante que emblemas de uma afetação caprichosa. A filigrana torna-se uma matriz construtiva. Formas pictóricas aninham-se dentro de formatos literais. Um objeto estofado é estampado com desenhos de pássaro, números, letras, e grafismos abstratos. Os formatos de cada objeto são elementares: com exceção das “tapeçarias” bidimensionais, quase todas essas “almofadas” são torções de uma letra C: a heroína combinatória da mostra.

Numa simples rotação à direita, os contornos de c tornam-se um par de pernas arqueadas ou um par de shorts, como André gosta de chamá-los. Esses contornos acabam por aglomerar-se numa tipologia alfabética, como se cada uma dessas coisas anônimas fosse o componente mínimo de uma sequência maior. Cada peça sugere analogias com todas as outras. Um glifo, daí uma palavra, depois uma frase, enfim um ideograma – condensação de imagem e letra. O jogo é simples e eficaz: ao esticar determinada porção do segmento, ou ao criar um ângulo reto inusitado no lugar de uma curva orgânica, as formas de repente deixam escapar alusões: uma bóia, um bote, um colete salva-vidas, um pórtico, uma fechadura.

Mas não há, com André, inocência quanto aos meios de expressão. Cada obra é minuciosamente construída. O tecido tingido, o retalho recortado com contornos mais ou menos figurais – alguns são eles próprios suportes para outros pedaços menores de tecido – numa sobreposição que faz com que as formas pareçam negociar sua legibilidade com o material. O preenchimento dessa série de letras herméticas com motivos florais, pássaros e toda sorte de informação visual produz um formigamento da visão. Preencher formatos assim “literais” com essa profusão de cores e texturas heterogêneas dá lugar a um problema formal nítido: a disparidade constitutiva entre a especificidade do objeto e a riqueza de relações internas do ornamento. No trabalho do André, esse problema chama-se tensão superficial.

A “tensão”, numa pintura, é uma instituição tomada como dada. Todo quadro é uma tela esticada num chassi, tudo bem. Como escreveu Robert Morris: “objetos que não projetam tensão declaram com clareza a sua separação do humano”. A preocupação de Morris era a criação de uma escultura unitária, que não “projetasse tensão”, e assim se livraria de todo antropo ou zoomorfismo, de toda relação de “intimidade” com o espectador. Eu diria que os objetos que não projetam maleabilidade ou moleza têm o mesmo efeito: parecer inflado, estofado, recheado ou inchado significa aderir à qualidade tênsil dos corpos orgânicos, à plasticidade inerente às formas vivas. É aqui que a tensão superficial de cada obra as situa entre o alfabeto e o organismo. Em Sete flores (2023), por exemplo, o contorno da letra, resultante da contenção do enchimento pela membrana de tecido, assim como a ornamentação irrestrita, tornam exteriores uma gama de relações internas, o formato se mantém a partir de seu recheio. As coisas são as peles delas.
Recorrer a uma dimensão tão sensual-sensória é insistir que o ornamento não seja alienado do objeto que o suporta, que não seja equacionado a um virtuosismo extrínseco, mas algo a que se chega depois de muito mastigar. Essa mastigação, para o André (eu acho) é a costura. Um espectador desentranha sentidos de uma série de oposições perceptivas, entre superfície ornamentada e corpo tridimensional, entre a cor do tecido tingido e a cor do tecido costurado, por exemplo. Numa fusão de percepção tátil e óptica, ele ou ela acompanha com o olhar a trilha deixada pela máquina de costura. Costurar não é o mesmo que desenhar. Com a costura, a linha não pode passear à revelia mas tem de cumprir um papel estruturante e impedir que o algodão – as vísceras da almofada – escape de sua pele. É a costura que produz a cumplicidade entre retalhos de tecido que leva à aparição de uma imagem – uma flor, um pássaro voando, a letra S e o número 2.

Em obras planas como Komorebi (2023) ou Mergulho dos pássaros (2023) há a aplicação de recortes e seus negativos, em camadas laminadas umas por cima das outras. Ver esses trabalhos é também procurar por encaixes, relações correspondentes de fundo e figura entre elementos heterogêneos, não mais a indecisão entre dentro e fora que ocorre nas obras tridimensionais. O primeiro, cujo título refere-se à palavra japonesa para as réstias refratadas pelas copas de árvore, joga com luz e sombra em alternância mútua. Essa atividade me parece abraçar o repertório de imagens bucólico do André; buscamos um princípio que faça de uma coleção de formas um padrão, como se procura a estrutura subjacente às espécies da natureza e aos sinais naturais que aparecem na paisagem. De vez em quando o padrão todo agita as penas e deixa formar novos arranjos e florações; partes de uma cena vão parar longe e se aninham numa outra peça. Ao mesmo tempo, há tanta proliferação de sinais e signos, tipos, regularidades, e inconsistências que a superfície tão sanduichada pode bem banhar-se num ruído visual análogo à tagarelice de maritaca.

Arco com pássaros (2023) é talvez a culminação das direções que tentei mapear acima. Sua escala e formato prontamente identificável como um portal produzem o que eu chamaria, com mais empolgação do que cuidado teórico, de arquitetura têxtil. O arco é claramente uma forma “ascencional”, e guia o olhar para o alto ao mesmo tempo que chama o corpo para atravessar o vazio que se forma entre suas linhas. Há uma profundidade espacial inegável que não depende do conteúdo do trabalho mas do seu formato. No entanto, o interesse aqui não está no branco a que a porta dá acesso, mas no próprio batente saturado. Comparece uma verticalidade ambígua, já que os pássaros levantam vôo dentro da imagem conforme o contorno pende do alto e da parede. O trabalho então se situa no ponto limite entre o peso e o empuxo, e parece ficar ali flutuando. Esse quase-vôo, a quase-queda de todas as obras tridimensionais as aproxima também de balões ou bexigas, essas borrachas sopradas de superfícies tensas. Todas as firulas têm essa pele esticada que denuncia alguma inflamação do que ela contém, uma agitação por trás da capa, o enchimento que quer se vingar do oco.

Pedro Köberle