Exposições

Xepa

Nati Canto
25/05 - 10/08/24

XEPA
A beleza da impermanência

Nati Canto observa as contradições absurdas de nossos tempos, torna visíveis as coisas invisíveis e cria poesia onde os outros veem apenas bagunça e sujeira. Em sua capacidade de abrir nossos olhos para coisas que normalmente não vemos - ou não queremos ver -, ela levanta questões sobre nossa espécie, como compartilhamos esta vida com outros seres vivos e como lidamos com a inevitável essência de estarmos vivos e destinados à decadência.

Para sua exposição XEPA1, a artista brasileira Nati Canto (1982, São Paulo) apresenta vários novos trabalhos que destacam sua prática de explorar a dinâmica dos sistemas vivos e sua impermanência. Como uma artista que trabalha com produtos orgânicos e adapta processos culinários, ela testemunha processos físicos e químicos, a transformação e envelhecimento, e como o tempo, no final, deixa apenas vestígios de sua existência. A abordagem artística radical de Canto confronta nossos esforços coletivos de permanência e nosso desejo constante de longevidade.

Suas obras são multidimensionais, algumas como Barriga (Belly) ou Surf’n’Turf que são de parede e de aparência avermelhada e viscosa quase nauseante, lembram intestinos ou pele de animais. Outras obras tridimensionais e de chão, parecem ter a parte cortada de um intestino com uma vida interna extraordinariamente vívida. Somente quando olhamos mais de perto a colagem elaborada de formas de frutas em gelatina, voltamos ao termo XEPA. Parece um acúmulo de produtos alimentícios, que estão sendo jogados fora devido à sua aparência imperfeita e condição meio podre. No entanto, essas formas de frutas têm um senso único de sobrevivência, algo profunda e puramente vivo. O uso de pigmentos naturais que Nati Canto obtém de alimentos como spirulina, barbatimão, urucum, açaí, tucupi ou cacau preto dá às obras um sentido ainda mais terroso.

Nati Canto trabalha com alimentos e materiais naturais como substitutos para seu próprio corpo. Como o corpo humano, o alimento contém fisicalidade orgânica e é marcado por processos alimentares. Nossos mundos externo e interno estão em constante troca, influenciando profundamente a materialidade do corpo. Em seu trabalho, ela visualiza o corpo como um organismo de constante transformação e aparência em constante mudança, um ciclo contínuo de construção e desconstrução, um conglomerado de experiências, boas e ruins. E quando a entidade física do trabalho corporal se deteriorar com o tempo, apenas a memória dele permanecerá. Embora Canto trabalhe com espuma de PU e resina para proteger os ingredientes da obra de arte, ela é, afinal, uma obra de arte biológica e ninguém sabe exatamente o que acontecerá com a obra a longo prazo. Ela mudará de cor, forma ou textura?

Profundamente influenciada pelos escritos da escritora brasileira Hilda Hilst, por Rabelais e seu mundo (1965), de Mikhail Bahktin, bem como pelo ensaio de Julia Kristeva sobre a natureza da abjeção e o grotesco feminino Powers of Horror (1982), Nati Canto coloca o dedo nas questões incômodas, assustadoras, mas inevitáveis e essenciais de nossos tempos. O conceito do grotesco feminino é sobre um corpo livre e fluido e também um rebelde ideológico. Há uma eroticidade de quem não se curva ao sistema. A obra Solar Anus (1931), de Georges Bataille, como referência aforística à decadência, morte, vegetação, desastres naturais, impotência e frustração refere-se à prática de Canto em um nível tão fundamental que ela batizou dois trabalhos anteriores com o nome de seus escritos surrealistas.

As contradições da convivência com o absurdo inspiram Canto a fazer poesia com ele. Usando ingredientes nobres, como urucum, tucupi, açaí, barbatimão e acrescentando a essa nobreza o material mais descartado e repulsivo, que é a gelatina - o produto final da chaleira. Esse jogo ambíguo traz um certo nível de ironia ao seu corpo de trabalho.

Com sua arte excepcionalmente bela e instigante, Nati Canto não apenas sustenta mistério e  erotismo, mas revela também a beleza que reside na decadência e na transformação ao longo do tempo.

Quando perdemos algo ou alguém,
Quando perdemos a nós mesmos,
a única coisa que permanece é a memória.
É preciso saber como perder.
É preciso aceitar a decadência de todos os seres vivos, de nós humanos.
Por que é preciso evitar que o corpo morra artificialmente?

1 O termo refere-se aos vendedores de comida de rua que vendem as sobras de produtos no final de um dia de feira de rua, quando a comida não parece mais tão fresca e algumas frutas e legumes deteriorados estão espalhados pela rua.