Somar, multiplicar, dividir, fortalecer: a fotografia como reveladora de novas e insuspeitadas alianças, parcerias e afeições.
Desde seu surgimento até os dias atuais, a fotografia – para além de desempenhar uma furiosa revolução em nossos aparelhos cognitivos e, portanto, na forma como apreendemos o mundo através do sofisticado aparato ótico humano – revelou-se uma verdadeira prática (artística, ainda que não somente) capaz de balizar e determinar discursos históricos e legitimar narrativas hegemônicas e, consequentemente, marginalizar outras tantas. Há aproximadamente dois séculos, vivemos em um mundo regido por imagens; hoje, em sua maioria, produzidas por máquinas fotográficas de diversos tipos e naturezas. Imagens estas, no entanto, que nada têm de inocentes, banais. Toda imagem carrega consigo uma miríade de significados e significantes, mais ou menos explícitos em suas superfícies, nos contando um tanto mais profundamente sobre aquilo que está a acachapado impresso em papel ou na forma de um conjunto de pixels luminosos a brilharem na tela de um smartphone ou de um computador.
No ano de 2019, Melissa de Oliveira iniciou sua produção artística registrando a vida cotidiana e os habitantes dos arredores do Morro do Dendê, na Ilha do Governador, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Nascida e criada na comunidade – amplamente conhecida como uma das zonas de conflito mais turbulentas do Rio –, Melissa começou a fotografar com uma câmera digital semiprofissional, aparato suficiente para que realizasse, desde então, uma prolífica incursão no campo da fotografia. Ou, ainda além, no campo da produção (sempre subjetiva, lembremos) das imagens.
Se historicamente o Dendê esteve inscrito no imaginário coletivo do Rio de Janeiro como uma das favelas mais conflituosas da cidade, foi pelas lentes de Oliveira que tal território passa a ser apresentado, desde então, por uma nova e insuspeitada ótica, na contramão de narrativas hegemônicas disseminadas especialmente pelos noticiários televisivos. Era sintomática a velocidade com que as fotografias da artista ganhavam corpo, luz e forma: tanto pela natureza do campo digital da produção de imagens quanto pelo modo com que hoje estas costumam ser distribuídas; em redes sociais, majoritariamente, logo ganhando um estratosférico alcance de visibilidade e exposição.
Em seus primeiros registros, Oliveira já contrariava a lógica óbvia que mirava o Dendê e seus moradores, ao subverter códigos típicos das favelas cariocas – como a regra de não registrar o rosto de quem é fotografado, código básico por entre as quebradas dos morros –, realizando um amplo e consistente conjunto de imagens que reunia desde retratos de seus familiares a cliques de jovens anônimos descolorindo seus cabelos por entre as esquinas da favela, assim como o registro de eventos recorrentes dali, tal como os dias de “Grau & Corte”, espécie de batalha de manobras com motocicletas que se revela um longo show de entretenimento para os habitantes da comunidade, ocorrido ao longo de um dia inteiro, seguido, usualmente de festas e bailes celebratórios.
Após participar de diversas exposições coletivas exibindo recortes selecionados destes seus primeiros trabalhos, a artista nos presenteia, em sua primeira mostra individual, com uma fina pincelada de obras retiradas das distintas frentes e séries às quais veio dedicando-se, nestes últimos anos. Aspecto que sempre chamou a atenção desde o início de sua prática, é o interesse de Oliveira por figuras masculinas que, frequentemente, aparecem como protagonistas de seus registros. Não há, aqui, no entanto, um aspecto voyeurístico ou mesmo da ordem da tensão sexual ou algo parecido. De maneira oposta à estes impulsos, a artista afia seu olhar em direção à comportamentos exercidos pelos próprios homens, entre si, quando delicadamente esbarram seus corpos, torsos e mãos, realizando gestos e expressando corporeidades que se dão nas interseções entre a amizade, a parceria e a afeição.
Instaura-se, aqui, um delicado exercício de alteridade que deflagra, justamente, o momento atual da produção da artista carioca, em evidente processo de maturação técnica e conceitual de sua prática. Melissa lança um olhar que em nada busca indagar ou questionar a orientação sexual destes homens, isto é evidente. Por vias inversas, busca capturar preciosos – ainda que por vezes fugidios, e em outras ocasiões mais explícitos e inteiramente públicos – em que a masculinidade antes quase inflexível e deveras pesada carregada por estes homens retratados em suas fotografias, desdobram-se em uma matéria terceira, uma masculinidade outra.
Está na forma como um pai leva ao colo seu pequeno bebê recém-nascido; aparece no leve toque de mãos quase impossível dos motoqueiros que impulsionam suas máquinas em direção ao ar, em plena suspensão gozosa. Aparece na forma com que um grupo de amigos se reúne para descolorirem seus fios, sem nem mesmo precisar que mãos femininas deem o toque de midas para que suas cabeças se tornem douradas, troféus de ouro a circularem em multidão.
As mãos que empunham armas são as mesmas que afagam o outro: seja este homem ou mulher ou afins – enfim! O que testemunhamos ao observar o grupo de fotografias aqui selecionadas pela artista para sua primeira individual, é um salto exponencial no que toca à delicadeza e refinamento de seu olhar e, não menos importante, de suas virtudes técnicas, de sua sensibilidade para a composição formal, para os enquadramentos aqui realizados, os jogos de luz e cores empreendidos, e ainda além…Códigos e signos típicos de quem atua – indubitavelmente – no campo da fotografia profissional – e ponto final.
Ainda que seja extremamente jovem, do alto de seus 22 anos de vida e vivência pelas esquinas, encruzilhadas, quebradas e becos do local onde nasceu, cresceu e descobriu o seu ofício, Melissa de Oliveira guarda, em si, a humildade e a maturidade de uma artista que ainda vai estabelecer uma incontornável trajetória artística rodeada pelas dores e as delícias que lhe cabem e que se apresentarão pelo caminho. Ao empunhar suas lentes seja diante de um amigo, de um parente, de um desconhecido ou de quem for, a artista sabe que está também levantando um espelho que (carregado de dor, mas também abundante em prazeres e delícias de toda sorte) permite que ela própria se veja, se espante, e constantemente se descubra (se redescubra).
Até aqui, Melissa não teve medo: é ela quem tem a chave (sempre) para resolver a equação matemática que se desvela no jogo de alteridade a cada vez que o obturador de sua câmera eterniza um instante qualquer. Mel sabe que olhar para o outro e para tudo aquilo que a cerca é, na realidade, um complexo processo de somar, multiplicar, dividir e, sobretudo, de fortalecer. A si mesma, aos seus e a quem mais chegar junto. Ao passo em que a equação seguir a complexificar-se, Melissa saberá tirar seus óculos espelhados, limpará seus dois olhos tímidos e buscará ver o mundo (novamente!) como se fosse a primeira vez. E então o baile seguirá.
Victor Gorgulho