09/03 a 18/05/24
Texto crítico André Pitol
O espaço entre as notas, a circulação dos bits
A princípio eles parecem rodar pela atmosfera cristalina como inúmeras facetas leves, a luz cintilante de uma pedra preciosa invisível. Eles orbitam pela noite estrelada, em agrupamen- tos que ora se aproximam e ora se distanciam; eles, os pássaros noturnos, sobrevoam en- quanto podem aquela superfície azul marinho quase regular, que serve como rastreio para as trajetórias mortais de suas breves vidas. “pássaro noturno cai a noite sobre nós e agora só restou do amor céu da guaicuri”. No limite entre a suspensão e a queda, o padrão de voo dos pássaros e o padrão cósmico das estrelas se conectam em uma dinâmica entre a estamparia e a aleatoriedade, entre o tecido e o arbitrário, entre a expansão de um papel de parede e o posicionamento preciso de stickers avermelhados...
... E então surge o som de vozes. Elas vêm das superfícies pictóricas das outras telas, algumas mais próximas e outras mais distantes, todas envoltas naquela atmosfera sonora. Pneu queimado. Carburador furado. O semblante fechado. Coração dilacerado. Três dedos de vidro baixo. Esses são alguns dos muitos samples sincopados por Bruno Alves em suas pinturas, que nos falam de uma poética bastante atenta e qualificada. Um trabalho que é processo e ao mesmo tempo resultado daquele processo, que produz pinturas que carregam o demora- mento muito similar àquela repetição proposital que temos ao ouvir os álbuns musicais que mais gostamos. Em busca dos pontos altos e dos contrapontos.
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A princípio eles parecem girar pelo espaço límpido como muitas facetas cintilantes na superfície da água. Eles escorrem em direções diversas e, no caminho, criam um sistema de transmissão entre uma tela e outra. Na superfície de “O espaço entre as notas”, por exemplo, a água é conduzida por seis traços paralelos azuis, que se destacam do fundo azulado mais clara; sua verticalidade rebate em outros componentes da tela e exacerba o dinamismo em mãos, escadas e rostos ali presentes. Já na superfície de “Nas águas sagradas da pia”, a água toma a forma de um jato azulado que coabita entre duas áreas brancas, uma delas recortada na forma arredondada e a outra mais pontiaguda, e cuja transparência ressalta o rapaz que ao fundo segura o regador. O sentido da tela sugere o movimento descendente daquela massa líquida, opondo-a à leitura ascendente do trecho musical “nada como um”, entre notas musicais...
...Mas uma outra profundidade fala também a partir da própria superfície do fragmento do jornal. Os fragmentos de partituras colados e desenhados em diversas das pinturas de Lucas Almeida abrem caminhos por entre as águas. Eles manifestam que o espaço entre as notas é conduzido por sulcos e bits, choro e purificação. A escolha, o sonho, a sobrevivência dos Racionais, do jazz e de outras composições que o visitante é convidado a ver, escutar e remixar às suas próprias referências. O ato de samplear do artista evidencia um exercício que se embasa na diversificação das citações usadas e no aprofundamento da experiência pictórica, de construção da pintura, desenvolvida tanto na prática do ateliê quanto em sua audição apurada.
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A princípio eles orbitam pelo sistema da colagem, cada fragmento em constante jogo semântico. A colagem, o sample, é a inteligência que unifica as telas “Diretoria lá da leste” e “Meu nome na sua boca silêncio nas boca do céu”, duas pinturas que se retroalimentam a partir do elemento construtivo em curva de seus arcos. Acima deles, as cores e os motivos da tapeçaria de Genaro de Carvalho; abaixo deles, a referência às cartas agigantadas de Juraci Dórea, que atualizam as mensagens presentes nos versos e rimas de Tasha e Tracie, banda Eva e Marabu. Imagem e som, arquivos diferentes de representações do mundo. Não é à toa que o princípio de samplear enquanto nível mais básico de uma motivação cultural remonta à amostragem do mundo feita pela imagem fotográfica e à gravação sonora do fonógrafo...
... Mas então começam as vozes. E elas entoam, cada uma à sua maneira, os seguintes versos: “Quem me protege não dorme”, “O luar representa ouvindo Cassiano”, “No piscar de olhos malandro demais vira bicho” e “nove noites ou deus pivete”. As vozes retratadas em pintura por Bruno Alves aparecem no tamanho médio dos discos de vinil. Elas têm os rostos centralizados e aparecem envoltos em halos azulados ou emoldurados em tramas decorativas em tons de verde, amarelo e vermelho. O avesso – o verso – de algumas dessas telas-discos são estruturadas com um tecido estampado, que adiciona à pintura um aspecto objetual e restabelece a tactilidade do manuseio das capas de discos.
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A princípio eles parecem se agitar no espaço vazio, aterrissar com leveza na superfície abstrata, folhas amareladas sopradas pelo vento, algumas de cabeça para baixo, outras na posição certa. A superfície abstrata se comporta como um disparador de meditações, na criação de um fluxo reflexivo de pintura, traço e forma, cujas passagens não projetam planos transparentes, e sim superfícies cheias de massa, de máscara e de revestimento.
A abstração de traços paralelos semicirculares, de cores alaranjadas, marrons, cinzas e uma grande área púrpura; esses tracejados que direcionam nosso olhar por entre os diferentes suportes materiais que estruturam a colagem-pintura, uma forma de carimbo. Carimbo como sample, que evidencia uma marca repetida pelo artista em múltiplas variações...
... E contudo, essa atmosfera se enche de vozes. Vozes de amor, vozes de compaixão, vozes de alegria, vozes de repercussão, vozes de serenidade. Lucas Almeida faz esses bits circularem por entre as curvas e contra-traços, sem esquecer dos trapézios e triângulos que também se rebatem e transformam as superfícies de vários de seus trabalhos. Da repetição de traços, alguns desenhos se destacam: um elenco de mãos, cabeças e corpos vêm à tona, desejantes por compartilhar conosco suas ações e expressões, enquanto escutamos suas vozes. Entre essas vozes, “o gênio desconhecido do extremo sul de São Paulo”, vermelho, azul, marrom, preto, marrom, vermelho.
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O espaço entre as notas é o momento preciso e contínuo em que os bits e os samples são ativados, em contrapontos, assim como são muitas das parcerias que criamos em nossos percursos. Nesse sentido, esta exposição é uma oportunidade mais que bem-vinda para ouvir as artes de Bruno Alves e Lucas Almeida, seus bits e samples, suas pinturas e colagens, seus percursos e parcerias. Prestar atenção nos contrastes complementares existentes entre suas poéticas, ativar o referencial que cada um traz ao nosso próprio repertório e, com isso, tirar proveito do melhor som que poderíamos desejar dessa batalha. As obras de Almeida e Alves oferecem a nós a circularidade de signos visuais, sonoros, gráficos, conceituais e decorativos em looping, que remixam a atmosfera límpida cristalina da pintura e enfrentam a superfície opaca do mundo. Fiquemos atentos aos próximos samples.