14/09/24 a 25/01/25
A desfalecer o falo
Wilfried Wiegand, crítico alemão, em uma sintética biografia de Pablo Picasso (1881- 1973) afirma com contundência que sim as máscaras africanas tiveram influência no processo do cubismo e mais precisamente nos trabalhos e pensamentos de Picasso. O crítico, a partir do relato do poeta Max Jacob (1876 - 1944), chega até a citar com precisão a ocasião na qual Picasso teve acesso a máscaras do Gabão de autoria não encontrada. A partir desse encontro na casa de Henri Matisse, podemos imaginar toda uma relação plástica e intelectual que de fato se deu. Há um valor presente nas máscaras dos países em África que é tão sofisticado quanto o que a semiologia inglesa, o cubismo e toda a arte contemporânea busca alcançar e discutir: signo. José Ferreira dos Santos afirma que signo é “toda palavra, número, imagem ou gesto que representa indiretamente um referente (uma cadeira) através de uma referência (a ideia de um cadeira em nossa cabeça)”. Essa ideia se faz presente no processo de dissolução visual de uma figura para representá-la a partir de uma sugestão com outras imagens/referências. Do ponto de vista plástico, temos um traço fundador do cubismo (1907). Afinal, as formas geométricas a partir das quais todas as figuras presentes na natureza podem ser modeladas, como afirmou Cézanne, quando organizadas representam “indiretamente um referente através de uma referência”. Temos aqui trabalhos de Mário Cravo Júnior (1923 - 2018) e Raylton Parga (1996), dois artistas que utilizam formas geométricas para construir máscaras de formas absolutamente distintas, com propósitos, ferramentas e efeitos, resultados, quase díspares, constituídos de aproximações e dissonâncias. Em união, ambos produzem fartamente signos.
Os trabalhos de Mário Cravo Júnior têm algumas persistências e acúmulos. A isso denominamos “marcas”. A mais evidente e louvável delas é oriunda da já citada formulação de Cézanne (1839 - 1906) que influenciou o pensamento de alguns dos mais renomados artistas europeus do século passado, atravessou o Oceano e aportou em Salvador, na Bahia, através inclusive do trabalho de Mário Cravo. Costumo entender, a partir de Maurice Denis (1870 - 1943) relacionando-o com Cézanne que, antes de ser figura, uma imagem é composta de formas. Antes das formas, as cores. A construção de obras a partir dessa lente foi determinante para que Mário Cravo Júnior fosse definido como “o artista mais importante para o conhecimento e divulgação da arte moderna na Bahia”. Assim MCJ é descrito no livro “Os primórdios da Arte Moderna na Bahia”, do artista e escritor Sante Scaldaferri. No mesmo livro lê-se um texto crítico de 1950 escrito por José do Prado Valladares (apresentado por Carybé como o “crítico mais sóbrio em palavras que já conheci”), com uma leitura altamente cubista dos trabalhos de MCJ, Valladares afirma: “toda ênfase é dada à criação dos sistemas de linhas, planos, massas, e a exploração dos valores sensoriais da matéria-prima”. Nota-se o poder da criação inventado com base em criações e poderes outros com o intuito de (re) criar o que já existe.
Um outro produto da sua insistência e acúmulo é a dimensão fálica que permeia suas obras e delas extravasam. Tal dimensão tem sua complexidade mais nítida a partir da leitura do texto “O gigante da encruzilhada”, de Mônica Maria Linhares Castrioto, para quem Mário Cravo Júnior concedeu uma entrevista. No citado texto lê-se: “assim, (MCJ) descreve Oxalá como orixá da criação e procriação, sendo a procriação intrinsecamente ligada à mecânica do sexo, ao sêmen; e sabendo-se Exu historicamente representado - em seus assentos na África - pelo falo, entendido como patrono da cópula”. Como veremos a seguir, entre Oxalá e Exu, a Criação e a Procriação, há uma curiosa projeção: o artista. Ou, quiçá, um humano, um artista.
“no começo, contam, era o vazio
o infinito silente, o descanso do caos…
Sem corpo, matéria e substância a vida foge, as emoções, pedregulhos, o espaço sem direção.
Som e ruído, adormecidos jaziam
na espera do acontecer
(….)
Eis que do segundo choque de matérias nascem fantasmas, memórias, morte e vida.
Na quinquagésima hora os artistas começam a arranhar suas cavernas,
modelar com dejetos, histórias, sonhos, e fantasias
O BIG BANG aconteceu um bilhão e novecentos milhões de milênios anos luz depois”.
Assim Mário Cravo Júnior escreveu o poema “O Susto Equilibrado” em vinte e nove de dezembro de dois mil e dez, em razão de sua exposição individual cujo título levou seu nome, que ocorreu na Galeria Paulo Darzé entre abril e maio do ano seguinte. O falo, “patrono da cópula”, antecessor e co-fundador da criação, contudo, sob a ótica da perspectiva cisgênero e absolutamente misógina insistentemente reafirmada a partir dos comportamentos e comentários de Mário Cravo Júnior quando em vida, ganham outro sentido: o de uma expressão individual, poética, cultural e política que reflete e recria um contexto para o qual ainda não destinamos devida atenção quando nos debruçamos a refletir sobre as obras e vida de Mário Cravo. Como ocorre com poucos outros artistas, percebe-se traços na sua obra de um pensamento artístico e de um pensamento extremamente pessoal que se revelam também num rápido assistir das relações humanas conturbadas e interações sociais perturbadoras fomentadas pelo artista em questão. Há soberana a noção de criador, o que lhe atribui um poder fálico e quase divinal. Rígido como a natureza das suas formas. Oculto, como todo verdadeiro poder. Inacessível como a intenção das suas máscaras.
Os ex-votos reelaborados e apresentados por Mário Cravo Júnior são, na verdade, resultados de uma cosmogonia afro-indígena segundo a qual é possível dialogar com um deus através de um objeto palpável. Os ex-votos são também oferendas, no sentido de que são ofertas materiais a partir das quais se estabelece um diálogo com o impalpável, divino. Quando doentes as pessoas levam às igrejas uma réplica do membro enfermo para que a divindade a cure. Sabendo dos elementos que constituem o imenso valor que os ex-votos têm para a cultura afro-brasileira e para o sistema da arte, Mário Cravo Júnior junto a Carybé e alguns outros nomes relevantes para as Artes no Brasil, realizou o que foi descrito pelo próprio Carybé como “viagens de resgate pelo Nordeste todo” nas quais pegavam de formas pouco conhecidas e descontroladas “ex-votos, santos, salvos de morrer nas torturas do cupim, cerâmica popular, enfim, tudo o que, para nós, tivesse interesse artístico ou nos revelasse uma forma nova”. No texto presente no catálogo da exposição “Evocações” (2002), individual de MCJ na Galeria Paulo Darzé, Carybé prossegue desenhando a imagem digna de si e de grande parte dos participantes do movimento bandeirante, digo, modernista: “dessas viagens, regressávamos empoeirados e fedorentos como cruzados e, como eles, com a sensação de dever cumprido, o dever de preservar o patrimônio nacional”. Preservar o que? Para quem? Repito a afirmação: nota-se o poder da criação inventado com base em criações e poderes outros com o intuito de (re) criar o que já existe.
Raylton Parga (1995), por sua vez, recusa o lugar de criador. Nascido em Taguatinga, Distrito Federal, cresceu entre o DF e o Pará e se formou em Artes Visuais na Universidade de Brasília (UnB). Quando perguntado sobre o porquê de fazer arte, o artista diz: “eu só sei que eu tenho que fazer”. Se revela na sua produção um tom despretensioso com a única pretensão de deixar acontecer, realizar, unir o cotidiano descartável e reencontrá-lo. Seus trabalhos existem a partir de outros e dos outros. Suas máscaras são mesmo para serem levadas ao rosto, não para ocupar uma posição totêmica. “Nelas cabem muitas coisas”, afirma Parga. Não é ele o criador ou revelador do seu conteúdo. Não há nelas quase nada de oculto. Esse é um traço “anti-fálico” e “anti-elitista” sobre o qual poderíamos nos debruçar unicamente e já seria o suficiente para estabelecer a produção do Parga como relevante e contundente, o que é. Como demonstração da sua eficiência, Parga deixa as perguntas em aberto. Seu corpo recua. É o trabalho a ferramenta de acesso ao próprio trabalho. Suas palavras se tornam quase irrelevantes, como ele bem gosta. Assim o artista renuncia ao poder da palavra. Tal renúncia também faz parte do seu processo de repensar o lugar de autoridade máxima, criador. Entende-se que esse “criador” é refém de um sistema de racionalidades, hierarquias, símbolos e narrativas que reencarnam modelos excludentes de poder.
Synístanai, palavra oriunda do grego clássico, é composta pelo prefixo “syn”, o qual convencionou-se traduzir como “encontrar” e “hístanai”, que significa, em tradução livre, “significa “fazer ficar em pé””. A palavra systēma, variação para latim tardio, pode ser definida como “encontro funcional ordenado e diverso”. Algo já sabemos: a ordem dos sistemas obedecem sempre a cadeias de comando baseadas em interesses variados. No caso do sistema-circo das artes, algumas perigosas premissas são, por vezes, impostas: escassez e rigidez/“consistência”. São ambas noções que deságuam em ferramentas de controle das obras e do próprio sentido que a academia, instituições culturais e seus membros dão àquilo que denominam arte.
As obras desenvolvidas por Parga e presentes na exposição, em sua maioria, desafiam uma série de noções rígidas. Podemos começar pela escassez ou inacessibilidade. As obras em si, são feitas com materiais amplamente acessíveis. Digo, não impõem uma distância através da composição da sua matéria. Esse, repito, é um traço “anti-fálico” e “anti-elitista”. Percebam que não se trata de mencionar durabilidade, mas sim rigidez conceitual, material, técnica e discursiva. Afinal, muitas vezes o sistema-circo das artes exige que artistas sigam produzindo no sentido de adequar seus trabalhos a moldes frequentemente apresentados como exemplos do que é arte. Parga comete uma subversão, por exemplo, quando pensa máscaras em papelão, fotografia, plástico e demais materiais que lhe permitem a experimentação (oposto da rigidez). Além disso, as máscaras não constroem um discurso fálico de quem esconde algo ou algum poder, nem mesmo ressaltam qualquer qualidade essencialmente produtiva, útil. Há uma leveza inerente às formas propostas pelo artista. Ao invés de fálicas, são fluidas, orgânicas, simpáticas e convidativas à aproximação e diálogo. Tais máscaras nos convidam ao riso.
A partir de Parga abandonamos o medo do que o outro corpo ou objeto pode nos atiçar, dessa forma se revela mais uma instância do caráter “anti-fálico-totêmico” da sua produção. A psicanalista e escritora Maria Homem, num dos seus livros, nos leva a entender que “o conceito de falo só funciona com um objeto exterior a ele”. Objeto esse que o falo busca controlar porque não tem controle de si mesmo. Podemos elucubrar também que o conceito de falo só funciona quando há um corpo que teme o que o objeto alheio a ele pode lhe atiçar. Nesse sentido, diante do Parga, o conceito de falo adquire uma deformidade. Não é mais retilíneo, uniforme. Agora é esparramado, circular, quase horizontal. As máscaras de Parga não exercem nem simulam nenhum exercício de poder, se tanto debocham dele. Ao se aproximar das obras, o corpo é atingido por um convite sem temor, sem ensaio de um poder inexistente. A irreverência é, em Parga, um desdobramento da sua personalidade de “tímido espalhafatoso” e da sua técnica. Suas referências, que variam de tempos em tempos, incluem Mestre Zimar, Waltercio Caldas e Maria Martins. Ao lidar com o próprio trabalho, Parga vê no humor uma consequência de si e da forma como enxerga o mundo. Não, criador não. Artista sim, com certeza!
Acompanhando a circularidade que deve ser instaurada, podemos pensar o exercício curatorial desta exposição como um tensionamento que convida o público visitante a percorrer as diferenças técnicas, visuais, conceituais e filosóficas propostas pelos trabalhos de Mário Cravo Júnior e Raylton Parga. São dois artistas homens que através dos seus trabalhos alimentam e propõem repertórios visuais e discursivos absolutamente distintos. O corpo de cada pessoa visitante irá sentir antes mesmo de entender. Esse fato premeditado será, por ora, suficiente para que entendamos os cursos que as expressões artísticas podem tomar na contemporaneidade. Nos deparamos, de um lado, com Mário Cravo Júnior com uma dimensão rígida e fálica, que se apropria de elementos alheios para construir contraditoriamente barreiras totêmicas. Por outro lado, ângulo, raio ou banda, Raylton Parga é convidativo, circular, disparador de mais encontros e aproximações numa composição visual, material e tecnicamente fluida. Temos, enfim, uma proposta que apresenta duas sistemáticas para as artes, filosofia, noções de poder, gênero e, claro, diálogo com o corpo e público.
João Victor Guimarães