Será possível exprimir o coração de um lugar não assim tão longe?
Como Francis Ponge, eu também, por muito tempo, me fiz as perguntas mais difíceis e agora me aplico às coisas mais simples. No meio do poema Introdução ao partido das coisas, Ponge diz o seguinte: “Não me conhecerão/ não terão uma ideia de mim senão através de minha concha/de minha morada/ de minhas coleções/ou antes/pois são armas/de minhas panóplias. /Através do acento de minha representação de mundo”.
Essa é a conexão que faço entre os versos do poema de Ponge e a cosmopoética construída por Erick Peres em Fim da Cidade. Quando atentamos para as panóplias do artista, somos capazes de captar um pouco da atmosfera do pequeno conjunto de imagens rastreadas por ele. Antigos retratos 3x4 que o tempo não conseguiu consumir, uma planta oficial da cidade de Porto Alegre, alguns bilhetes quase ilegíveis, fotografias aéreas que nos contam o início do fim da cidade, um poema escrito por sua mãe num pedaço de papel amarelado, uma foto [intencionalmente rasgada?] de um casal feliz em algum verão passado ou o maço de cigarro de uma marca que já está fora de linha etc. Efeitos cumulativos de vivências pessoais e coletivas, que se transformam numa estranha topografia povoada por rastros fantasmáticos, vultos e outros indícios preciosos. Me parece que, aqui neste trabalho, o ideal hegemônico de clareza não é um objetivo a ser alcançado.
Talvez a onda seja essa mesmo, brincar com o borramento, praticando uma espécie enviesada de fenomenologia do borrão daquilo que, de um modo natural – ou não –, se recusa a jogar o jogo do nítido pelo nítido. Todavia, a pregnância dessas imagens fugitivas, que arrastam seus espectadores para dentro da floresta de signos, como numa guerrilha infinita entre a aparição/desaparição, fragmentação, evanescência e outros mistérios, ganha mais densidade a partir dos procedimentos técnicos realizados. Em vez de limpar, no sentido lato do termo, Erick embaça ainda mais, rasga, rasura, cola e descola, pondo em xeque os sentidos da clareza. Tal como o filósofo Serge Margel, ele também realiza a sua arqueologia do fantasma, relacionando fotografia, etnografia, contra-cartografia, arquivo e trabalho artesanal feito com madeira. Como se fosse necessário dar mais corpo aos fantasmas da imagem, o artista, atormentado pela sua memória fugitiva, decide cortar pequenos pedaços de madeira, gravando nestes cortes os espectros que o assombram.
No desejo de ressignificar memórias invisibilizadas, narrativas quebradas e subjetividades apagadas, indubitavelmente, esse tipo de jogo extremo do espírito empreendido pelo artista recorda, às vezes, a dinâmica das estatuetas minkisi da cultura bakongo. “Eles são pontos que intermedeiam a graça protetora entre os vivos e os mortos” — é o que diria Robert Farris Thompson, autor de Flash of Spirit. Não por acaso, lampejo de confluência ou coincidência, Erick Peres utilizou o pinus, madeira de alta qualidade, resistência e durabilidade na construção dos seus quadros. Outro elemento de reflexão é que essa madeira remete a uma expressão local, marca característica de todos os bairros e vilas ignotas do fim de uma cidade particular: Porto Alegre. Inclusive, lá no Ipê, na Cefer ou na Bom Jesus, aliás, em toda zona leste, onde ainda pululam as casas construídas com esse material.
À medida que fui conhecendo Erick Peres, passei a perceber como ele se relaciona de uma maneira muito íntima com as memórias da cidade, sempre partindo do seu umbigo no mundo, o seu próprio fim da cidade, por meio de imagens soturnas e emudecidas. A presença da ausência em sua obra também é uma assombração constante. Assim como a questão da evanescência dos corpos no fim da cidade. Consequentemente, aqueles seus amigos, que morreram por nada, ou quase nada, podem reaparecer aqui, marcando presença, na superfície da madeira pinus, no rastro do ilegível e no estranhamento das coisas que não se deixam ver assim tão facilmente.