Com alguns desenhos espalhados sobre a cama, Ana Matheus Abbade (1996) e eu conversávamos sobre paisagem, luz, ar, breu. As nuvens de suas obras pareciam vibrar por entre as dobras do lençol, cujo relevo moldava as superfícies de papel arroz de seus recentes trabalhos. Uma brisa leve passava por nós e, penetrando as fibras das folhas e fronhas, trazia para a conversa a memória das atmosféricas paisagens de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962).
A verticalidade das obras a carvão de Abbade evocava os compridos recortes de paisagem do artista mais velho, absorvido por referências estéticas asiáticas que, tal como a pintura chinesa, são em parte identificadas pela assombrosa capacidade de performar, com vazios e aquarelagens, a invisível presença do ar.
Se para Ana Matheus a aproximação entre as suas obras e as pinturas de Alberto era deveras surpreendente, para mim a relação entre ambos tinha o gosto de uma antiga amizade. Conhecedora do interesse de Abbade pela matéria volátil (do que são evidência suas instalações anteriores com vidros, acetonas e hormônios, como Mona da Boca) e, naquele dia, testemunhando a finíssima camada de pó preto que, impregnada nos desenhos feitos com fusain, airosamente pousava também sobre a brancura das paredes e do piso do ateliê, aos meus olhos, as paisagens de Ana e de Guignard pareciam imantar umas às outras.
A despeito de seus contextos e épocas distintas, os dois artistas compartilham o desafio de representar e performar a umidade, a densidade e a opacidade do ar. Enquanto Guignard tomou os céus, as nuvens e as montanhas como ponto de partida para investigar, através do gênero da pintura de paisagem, as formas de impregnação e continuidade entre seres, tempos, topografias e atmosferas, por sua vez, Ana Matheus tem se interessado pelo mesmo assunto a partir do carvão.
É com essa matéria seca, porém densa, que a artista tem composto desenhos atmosféricos que se aproximam da fatura da pintura, encarando o problema da mancha desde a experiência do pó – esse que surge à medida em que a artista imprime gestos de força e mistério sobre uma folha de papel arroz até a exaustão do carvão, dissolvido em massas de breu e vestígios da ação de suas mãos, dedos e unhas.
Seu gesto compositivo é o da continuidade. As formas surgem no espaço-tempo da transformação dos bastões na volátil nuvem de carvão que se alastra e se sedimenta sobre a superfície enquanto a artista esfrega aqueles pedaços de madeira queimada sobre as tiras de papel arroz que atualmente recobrem as paredes de seu ateliê, em São Paulo. Através do peso de seus gestos, Ana incide contra o plano, continuamente fazendo e desfazendo formas que sensualmente se imiscuem ao seu próprio corpo; reciprocamente impregnado pela incorporeidade da carbonizada nuvem por ele produzida.
Nesse processo, na composição dos trabalhos das séries Serpentes no Mangue (2024), Noturna (2020) ou Floresta (2023), Abbade tem também dado sequência à sua pesquisa sobre a incisão, o talho e outras formas de inscrição na superfície. Se, ao longo dos últimos anos, a artista tem abordado essa questão a partir de uma ideia de transição na qual a unha torna-se navalha – relacionando o corte à experiência não binária de gênero e suas implicações sociais e políticas diante da cisnormatividade, do que é exemplo a fotografia Unhas rasgarão cidades (2016) –, em suas obras recentes a própria incisura tem fascinado a artista enquanto perspectiva estética e política diante da matéria do mundo e dos corpos.
É nesse horizonte que, por sua vez, se encontram Mira Schendel (1919-1988) e Abbade, ambas interessadas no caráter gráfico e ontológico daquilo que se exprime através das marcas de sua própria passagem e ação sobre o papel. Ao produzirem rastros na forma de sulcos sutis, ainda que nem sempre gentis (do que são testemunhas os rasgos nas obras da artista fluminense), através da monotipia ou de desenhos que se avizinham às técnicas da gravura, Abbade e Schendel parecem, como nas palavras da primeira, “medir o mundo à unha, daqui até ali”. Foi assim que, por entre a dimensão fenomenológica da luz na obra de Guignard e de Abbade, Mira igualmente incrustou um lugar para o seu diálogo com a obra de Ana, ambas sensíveis ao que há de abertamente ontológico por entre a instável dimensão fenomênica da vida.
A força das ranhuras gráficas de Schendel passou a encontrar, nesta pequena exposição, uma profunda correlação com o modo pelo qual a artista fluminense tem transformado todas as partes de suas mãos, bem como todos os milímetros do carvão e mesmo a agência do papel, do vento ou da umidade do ar, em dispositivos de composição. Uma política composicional que está, por sua vez, implicada no modo como como a artista tem experimentado a constante (re)invenção de suas formas de afetar e afetar-se, como escreve em seu diário:
“Eu existo para a obra-sê, logo é registro da minha intenção, dos meus intervalos com o lugar que habito, e existo tão somente nesse espaço intervalo entre a porosidade da folha que pelo peso deposita intensidades do carvão, e pela permeabilidade esvoaçar de forma tão dissipada como quem maquila a pele, e o carvão, posto à mão, como a língua está para a arcada dentária, a madeira se firma em lastro e se desfaz no registro de um gesto, tensionado no exercício cotidiano de inscrever um código, um segredo em outra língua, não minha, nem de outra, pulsões, vibrações, códigos de pulsões sonoras e a mancha da materialidade que resta, e faz a coisa viva, com seu próprio passado, seus registros passados, acumulados e transpassados. Se relacionam como quem se ama, que tanta ligação se disjunta.”
Como nos lembra Ana Matheus, há algo de amor que se realiza através do ar – esse que atravessa e conecta Abbade, Alberto da Veiga Guignard e Mira Schendel em seus modos de habitar e fazer poesia com o vazio, com o vento, com as nuvens, com a umidade e outros mistérios cósmicos nos quais estamos imersos.
Entre paisagens e monotipias, os três artistas acariciam materialidades fugazes e dão relevo aos invisíveis que nos cercam e nos constituem: “o amor e o puro gás ao meu redor”, como anota Ana noutra das páginas de seu diário.
Clarissa Diniz