18/01 a 13/04/24
Curadoria de Paulo Azeco
Caía a tarde na terra de Pindorama, naquele aparentemente ordinário 12 de abril do ano de 1500. Pelos arredores, os habitantes começavam a recolherem-se, pouco a pouco, indo para suas ocas, kupixawás, redes e afins. Se recontada eternamente, esta história virá mesmo a padecer no colo da mais pura ficção. Científica, é claro. Com certas doses de melodrama televisivo também, diga-se. Mas, no fim, a história se revelaria um inenarrável e infindo episódio de descomunal violência, brutalidade pura, sequestro, roubo, farsa e fim.
Atal fatídica tarde daquele inerte mês de abril, transcorria na mais plena serenidade, uma tarde deitada em um incorrompível estado de calma que havia imperado por todos os dias e cantos possíveis de Pindorama, desde seu início, desde seus primeiros habitantes, desde aqueles que nem sabemos quando; ou quando o quando já nem vale mais para contar tempo nenhum. Sempre houve muito Brasil antes do Brasil, sabemos.
Serelepes a repetir suas rotinas diárias de peraltices e outras brincadeiras terra afora e terra adentro, um pequeno grupo de meninos e meninas pataxós - grupo étnico indígena cuja maioria de seus membros residiam no sul do estado da Bahia, onde hoje encontra-se, por exemplo, a cidade de Porto Seguro- dava passos diminutos em direção à montanha de pedra que tanto lhes fascinava.
Futuramente batizado de Monte Pascoal, seu nome viria a referenciar o período da Páscoa, tradição católica (é claro, por quem mais seria?) pelos malcheirosos homens portugueses que do além do além-mar por lá desembarcaram, justo no fatídico dia 12. Um susto e um estrondo, o paraíso tomado num rompante. A linha do horizonte, antes sempre tão nítida, tão perfeitamente reta bem acima da imensidão do mar, estava naquele dia borrada por tons depreto, cinza, marrom e outros ainda mais sujos, descolorindo o céu em uma paleta rubra, negra, espessa de ganância e prenha de fumaça.
Cada vez menos distantes, às 19 naus portuguesas que primeiro desembarcaram nas terras de cá, causaram espanto e olhares esbugalhados. E, sobretudo, medo do encontro, da morte, da impossibilidade, do sorriso atravancado, da doença e do poder. Ao passo em que a comunidade pataxó se reúne praticamente inteira no filete de areia a aguardar o temido desembarque daqueles indecifráveis homens brancos, a criançada não teimou em correr mata adentro, fugida, escondendo-se efemeramente em arbustos, topos de árvores, camuflando-se entre folhas robustas daquela vegetação tão rica e tão generosa - do que mais precisariam? Perguntavam a si mesmos…
Em meio a multidão, os miúdos saíam correndo feito onças pequenas, ferozes, velozes, atrozes em concatenar o que então estava a se passar. Um deles, caçoando do amigo, gritou: "Tá parecendo um milho, mané..! Você correndo só vejo um grãozinho, pequeno, pequeno, parece que com tanto calor de repente esse milho estoura e se esparrama, areia, lama, mato, o homem branco e o indigena daqui nato, fincado, abestado, sem ter o que fazer. Vai virar pipoca!'
Bem, baixinho, primeiro apenas para si e depois, como num canto coletivo, organizado em pequenas rodas, uma das lideranças da tribo, um senhor pataxó do alto de seus 77 anos, sussurra: "há vida depois de Pindorama, Pindorama somos nós. Tem vida depois de Pindorama. Pindorama é nossa, Pindorama é aqui...", repetia, trôpego, enrijecido, zerado de fôlego e de esperança, atônito a olhar para a mata, onde o verde reluzia quase em fogo o amarelo que o céu não se continha em brilhar. "Pindorama é nossa", balbuciou, já praticamente inaudível.
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O prólogo acima não abre este texto por coincidência ou sem uma razão de ser um tanto singular. Sabemos que, muito antes de qualquer ideia de "descobrimento” da terra sobre a qual pisamos e que, há pouco mais de 500 anos, concordamos em chamar de BRASIL, havia, já há muito, gente por aqui. É, no entanto, este marcador temporal do dia 12 de abril de 1500 aquele escolhido pelas narrativas históricas hegemônicas ocidentais mundo afora.
Ainda que estas mesmas narrativas venham passando por um contundente e afiado processo de revisão, sendo lidas à contrapelo e permitindo que certos agentes e determina- dos episódios históricos revelem-se, hoje, diante de nós, o avesso de como os conhecemos em um primeiro contato escolar (majoritariamente). No entanto, dentro da narrativa da "descoberta" de Pedro Álvares Cabral - uhum, concordemos por um momento com a falácia hilária...! - há um fato que merece um destaque em luzes neon com pisca-pisca. Ainda que o território destas bandas de cá não estivesse nem demarcado (daí pensarmos como a ideia de território e fronteiras são verdadeiras abstrações!) no solo que há tanto chamamos comumente de BAHIA.
Não é pouco pensarmos no papel histórico desempenhado por indígenas (pataxós e tantos mais, certamente, de etnias diversas espalhadas por nosso chão e florestas), na forma como encaram com a impavidez e um alegre medo a gritar dentro de si mesmos, nossos novos amigos de além-mar. Tamanho era o espanto, tamanha era a impossibilidade de comunicação, tamanho era o desejo e a atração instintivas, carnais, mas nada era tão desmedidamente imenso quanto a sede de poder e a arrogância do homem branco europeu.
O resto, daqui adiante, é história a desenrolar-se feito uma longa fita de moebius que iria atravessar todo o território do estado que hoje chamamos de BAHIA e, apenas após, seguiria delicadamente riscando, desenrolando-se pela areia vermelha para o alto e para "abajo". Pindorama queria ser grande e não havia caminho de volta. De quem a terra agora seria e sob quais dinâmicas viria a ser partilhada, retorcida, logo iremos entender. Compulsoriamente aceitar. A diáspora africana, vil e impiedosa, rasgaria os oceanos do planeta em rotas que beneficiassem os movimentos dos barcos que do velho mundo decidissem navegar. Entre o Golfo do Benin e a Baía de Todos os Santos, surpreendentemente ainda apesar de todo o sofrimento, ouvia-se canto, por vezes sobreposto ao pranto. Quem de lá veio e em Todos os Santos se pôs a ficar, trouxe consigo nos bolsos das vestes rasgadas ou guardado junto ao peito ou em mãos cerradas, segredos, desejos, memórias, magias, macumbas, pequenos seres, gente que veio de de um palacete, metafórico ou real, inscrito na alma, no olho, na alma do olho, na pele, no corpo, no corpo da pele e na pele do osso.
Silenciosamente, inventaram a Bahia e – pasmem! – sem que desconfiassem, inventaram o Brasil. A Bahia e o Brasil. Entre eles, combinaram de chamar as duas terras como bem entendessem, guerreiros a rasgarem oceanos, agora vivos em água salgada em seus pulmões e estômagos. A Bahia é o Brasil. Talvez até maior que o próprio Brasil. "Shhh. alguém sussurra ao fundo, temeroso de cuspir à esmo um de seus belos segredos.
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PIPOCA, aptamente intitulada para inaugurar o espaço da galeria NONADA em Salvador, reúne a produção - em um regime contínuo de transformação de sua montagem e desenho expositivo - de mais de 40 artistas, oriundos do Sudeste e do Nordeste, mas também de tantos e muitos outros cantos do nosso país também. O programa curatorial que orientará as mostras e ativações realizadas neste espaço (e fora dele) ao longo do próximo ano, foi ambiguamente batizado de "Régua e Compasso", a partir, é claro, da música "Aquele Abraço", de Gilberto Gil, composta em 1969. Se o mestre Gil afirmava que era a sua Bahia quem havia lhe preparado para o mundo com os dois objetos triviais, capazes de lhe permitirem traçar retas, circunferências, caminhos simples, caminhos tortos, obtusos, labirínticos, mas, invariavelmente, libertadores, é a Bahia quem ainda pode hoje nos revelar o Brasil que há depois do Brasil. Ora, não há redundância nesta afirmação, tampouco precisa-se manter em segredo: houve Brasil antes do Brasil; há Brasil após o Brasil.
Não menos importante - perfeitamente pelo avesso e o contrário disto! - a pipoca,enquanto signo e alimento, símbolo religioso e ritualístico, escancara todas as suas dimensões semânticas possíveis e já listadas em qualquer dicionário já antes rascunhado. Aqui, a pipoca é a energia que, quase palpavelmente, instaura conversas entre pinturas, fotografias, vídeos, esculturas, performances, seres invisíveis e tudo o mais que compõe a presente mostra. Está tudo a pular feito pipoca no fogo quente, diante da gente, aqui e agora. E se a Bahia é a verdadeira terra do carnaval, que beleza há em nomear como... PIPOCA!... a massa real de gente viva, pulsante, preta, branca, deslumbrante. Pipocas a pular pelo asfalto, a se apaixonar, a se perder na multidão, mutantes em busca de uma nova geração... que certamente virá.
Nos terreiros, em festa e em luz, os ritos têm. PIPOCA. os reis gostam de pipoca, as rainhas ainda mais, as trans, as queer, as não, as bi, as mona, os ken, os men, as ném, a patricinha e a miss da febem, os cria tudo e os playba são igual, meu bem. Ousamos, com a licença e as bençãos, pedidas e seladas, fincar a régua e o compasso nessa terra de santo, de força, de ventania e de mansidão.
Se a Bahia é o mundo todo, só a Bahia sabe o que é bom.