Exposições

Fragmento I: vento pórtico

Iah Bahia, Loren Minzu, Siwaju
06/05 a 11/06/2023

Exposição que coloca em diálogo a produção de três artistes: Iah Bahia, Loren Minzú e Siwaju.

Com curadoria de Clarissa Diniz, a mostra ocupou não só o espaço da galeria, mas deu início ao Projeto Fábrica, ocupando vários espaços da antiga fábrica e foi dividida em dois fragmentos. Segundo a curadora, o primeiro explora a dimensão de vazio, ar e vento presente nas obras des artistes, enfatizando não o repertório técnico-formal evidente de suas obras – ferro, cerâmica, papel, tecido, etc –, mas uma dimensão sobremaneira invisível das mesmas.

Através dos avessos, negativos, mimetizações, concavidades, flutuações e movimentos das obras, o Fragmento I investiga o vazio como significante, o vento como condutor de sentidos, a arte como instrumento de comunicação por entre invisibilidades e sussurros tão ancestrais quanto futuros.

Esta não é mais uma fábrica, nem isto é estritamente uma exposição. O primeiro dos fragmentos que Iah Bahia, Loren Minzú e Siwaju concebem nas antigas instalações da marca de lingerie Marilan, na Penha, VENTO PÓRTICO dá forma ao espaço-tempo de transição do que já foi uma confecção e que, agora, retoma sua vocação inventiva ao experimentar novas funções e usos.

Se hoje nominamos este momento de Projeto Fábrica, o fazemos porque é nesta planta industrial, com seus maquinários e matérias-primas, que as artistes têm, desde março de 2023, compartilhado seus processos de criação. Somam-se à história do lugar e elaboram, desde suas práticas e corpos, outras intencionalidades e sentidos para a inscrição social e cultural desta fábrica na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Desativada em 2015, é na fértil presença de Iah, Siwaju e Loren que a Marilan de outrora se faz cúmplice do avivamento em curso. Transforma seus antigos refeitórios em ateliê; seus tecidos, estantes de metal e demais tecnologias em dádivas para a engenhosidade artística; seus vestígios e sujeitos em interlocutores; seus ambientes em espaços expositivos e de experimentação; seu território e sua vizinhança em novos horizontes de pertencimento e de responsabilização política.

Em diálogo com as memórias da Marilan e com Absolon Matos, Diego Araújo, José Laurindo, William Porto, Wagner Freitas e William Reis – funcionários que hoje seguem trabalhando na Fábrica –, as artistes atualizam e fortalecem a vocação criadora das centenas de pessoas (em especial, mulheres) que, o longo de aproximadamente 50 anos, fabricaram calcinhas, sutiãs ou maiôs numa contínua experimentação de desenhos, cortes, moldes, costuras, cores, tecidos. Ao fazê-lo, aproximam-se de uma história de trabalho marcada por relações de gênero, de classe e raciais para a partir dela imaginar e exercitar práticas de reparação e de redistribuição de saberes e de valores que tomam a criação como seu fio condutor.

Assim, Siwaju, Loren e Iah instauram Fragmento I: VENTO PÓRTICO – com a atual parceria da NONADA Galeria – desde dentro, como também a partir da Fábrica, seus ambientes, riquezas, conflitos e histórias. Na esteira da convivência e dos aprendizados desse espaço-tempo de invenção, crítica e interlocução coletiva, nesta que parece uma exposição mas que é, em verdade, um ateliê expandido, as artistes apresentam esculturas, instalações, intervenções, gravuras, vídeos e objetos que testemunham tanto as singularidades, quanto às convergências de suas obras.

Radicades no Rio de Janeiro, suas pesquisas proporcionam uma instigante visada da produção recente da arte brasileira que se interessa por constituir uma relacionalidade simétrica (quiçá recíproca) com materialidades que, a exemplo do papel, do ferro, da madeira ou da cerâmica, têm sido convocadas para processos criadores desde a subjetividade de suas fisicalidades, ou seja, como alteridades.

Não estamos diante de projetos estéticos extrativistas no seio dos quais as matérias são instrumentalizadas como recursos a serem apropriados – quando não expropriados – por mãos e gestos autoritários. Ao contrário, objetos, substâncias e outros elementos não são encarados como coisas dessubjetivadas, mas como existentes.

Termo caro a Loren Minzú, existentes faz referência à dimensão ôntica das presenças que integram suas obras, como a argila ou os galhos que concordam em ser tocados pelo artista, estabelecendo com ele um campo de relações que encontram, na forma de obras de arte, uma das muitas conjunções que não só lhes são possíveis, como fundamentalmente desejáveis.

Vem deste interesse por materialidades vivas também a dedicação de Iah Bahia e Siwaju a tecidos ou metais nos quais estejam inscritos, na forma de ferrugem, de sujidades ou de desgastes, as silenciosas memórias de suas próprias existências. Ao invés de comprar materiais novos para suas esculturas, arranjos ou instalações, têm ética e politicamente se comprometido em agir junto ao que já existe, ainda que em estados de invisibilidade, silenciamento, destruição ou descarte por entre ferros velhos e caçambas de lixo.

Desse modo, suas obras se tornam territórios para insurgências estéticas contrárias à economia da obsolescência. Politicamente, seus gestos não se filiam à fantasia higienista de uma criação ex nihilo (surgida “do nada”). Em direção oposta, eticamente se comprometem em seguir transformando o que nunca cessou de estar em aberto e em plural processo de recriação: perspectiva ético-estética agora vivenciada no Projeto Fábrica.
É desde o âmago dessas concepções tão ontológicas quanto sociais que, neste Fragmento I: VENTO PÓRTICO, provocamos os públicos a ampliar as habituais abordagens técnico-formais dos trabalhos de Bahia, Minzú e Siwaju para experimentá-los não a partir de suas contundentes materialidades, senão eminentemente a partir de seus negativos, avessos, flutuações, ocos, hiatos.

Ao fazê-lo, percebemos que não apenas suas corporeidades são impregnadas de capacidade agentiva, como igualmente a sua vaziez. Irradiando-se na própria vaguidão, tal plenitude de agência avizinha-se a um conceito central da obra de Lygia Clark e de algumas tradições construtivas da arte brasileira: o “vazio-pleno”, este que “contém todas as potencialidades”, sendo “o ato que lhe dá sentido”.

Contudo, como revelam Cenas de corpo e segredo II e III (Loren Minzú), a série A<->F (Siwaju) ou 1#experiência-breu (Iah Bahia), estes vazios não são vácuos passivos à espera de atos significantes que seriam capazes de preenchê-los ou de lhes atribuir sentidos ontológicos. São, ao contrário, existências em si mesmos. Estão “cheios de ar”, tal qual decifra Gilberto Gil em Copo Vazio (1974), canção então gravada por Chico Buarque: “É sempre bom lembrar / Que um copo vazio / Está cheio de ar”. Portanto, gravar, esculpir, dobrar, modelar ou habitar a vaziez é fazer vento, movimentar a massa de ar que, visibilizada na oxidação que delicadamente abraça as esculturas de Siwaju, a tudo preenche e acolhe.

Identificando-se à densa vaziez de Gil, as artistes dão a ver o quão criminosa foi (e segue sendo) a presunção de desertificação que lastreou a empreitada colonial que argumentava serem desabitados e esvaziados os territórios que, por isso, presumia-se “autorizada” a ocupar.
Uma retórica da invasão canonizada na letra que Vinícius de Moraes compôs para Brasília, Sinfonia da Alvorada (1959), encomendada a Tom Jobim pelo presidente Juscelino Kubitschek para celebrar a triunfalista inauguração de Brasília: “No princípio era o ermo / Eram antigas solidões sem mágoa. / O altiplano, o infinito descampado / (…) Eram antigas solidões banhadas / (…) Não havia ninguém / A solidão mais parecia um povo inexistente / Dizendo coisas sobre nada.”

Enquanto os artistas daquele meio de século XX imaginavam estar criando Brasília de modo ex nihilo – do alto de seus desenhos hétero top de vergalhões eriçados penetrando massas de concreto armado –, negando a existência dos povos daquela terra e esvaziando suas vozes do direito à enunciação, VENTO PÓRTICO nos revela que seus ouvidos não foram capazes de escutar o que diz o ar.

Tomando de empréstimo um trecho da áudio-instalação Toda terça, tudo movendo, de Siwaju, o título deste Fragmento I adverte-nos, então, que os ventos são mensageiros e que, cosmologicamente, carregam conhecimentos ancestrais por entre temporalidades. Atravessam fronteiras, tomam corpos. Como em algumas peças de Iah Bahia, Siwaju e Loren Minzú, encurvam planos, sacodem as correntes, fazem uivar bambus.

Por isso Fragmento I: VENTO PÓRTICO imanta esta Fábrica com obras que, através de seus vazios, dialogam com os sussurros e os enunciados dos ventos. O que aqui se instalam são sobremaneira dispositivos de comunicação. Mais do que uma exposição, instaura-se um campo de escuta: pórtico que torna possível a transformadora permanência de sonhos, segredos, preces e pragas que alguns ouvidos ainda teimam em ensurdecer.