“os códigos de uma comunidade são descodificados pelos seus membros;
Os códigos do sistema variante são descodificados apenas por seus membros” i
Bunseki Fu-Kiau
A vida é essencialmente um processo de comunicação perene e mútua. Na cosmologia bantu-kongo, um indivíduo e vive e se move dentro de um oceano de ondas. Comunicar é este processo de emitir e receber “ondas e radiações”. O dikenga, o cosmograma sustenta a crença de que cada individuo ou comunidade segue um ciclo de vida comparável às diferentes posições do sol, evocando a continuidade da vida, independente da morte física. Esta é uma forma de viver e sentir o tempo – somos seres relacionais e existimos e interagimos num tempo cíclico.
Esta circularidade e imbricamento da vida e espiritualidade são os fundamentos da obra de Cipriano. A mostra patente da galeria Nonada, Sarava o invisível apresenta obras da série Macumba Pictórica, pinturas em grande escala sobre lençol de algodão, e desenhos sobre papel, onde o artista convida-nos a entrar um espaço liminar entre o visível e o invisível, o sagrado e o profano, corpo e espírito. as pinturas performáticas apresentam um conjunto de gestos ritualísticos e especulativos que tecem relações entre memória, movimento e espiritualidade.
Partindo da sua trajetória pessoal e da sua relação com o terreiro, e do uso de materiais simbólicos – o algodão, o carvão, a pemba, - Cipriano cria um léxico próprio, que capta e expõe sua jornada espiritual. Aqui, o fazer artístico é também uma performance ritualística. O algodão que carrega em si a história da plantação e do tráfico transatlântico, mas que é também um tecido que cobre e acolhe o corpo, uma segunda pele. A tinta cal que tinge e transforma o branco dos lençóis, criando manchas movimentadas, o carvão risca o tempo-espaço e aponta possibilidades de inscrição no mundo. A pemba que sacraliza a escrita.
Ao deslocar a práctica do terreiro para o fazer artístico, Cipriano introduz uma ideia de desenho-pensamento subordinado ao tempo a ser riscado – cada traço é uma invocação, um gesto corpóreo, que tal como os pontos riscados dos terreiros e funciona como escrita, como linguagem.
Completando este léxico completo, está a palavra – o canto, os tambores e a música, meios de comunicação ancestral e tecnologias de activação da memória colectiva. Os pontos cantados potencializam esta imbricação entre o quotidiano, o sagrado e profano.
Repetição e sobreposição de camadas (de técnicas e de materiais) são uma metodologia de memorização e enfatizam a circularidade enunciada nos terreiros e na dikenga, e revelam uma multitude de significados – os lençóis de Cipriano são pequenos territórios, peças de um arquivo transiente que carregam uma multitude de culturas materiais interligadas por uma história comum, tecnologias de resistência, regeneração e cura.
Cipriano não se limita a ilustrar uma forma de estar, o artista performa uma cosmovisão muito própria, na sua vida e no seu fazer artístico. Em Saravá o invisível, somos convocados a participar nesta gira, a participar desta comunidade e aprender os seus códigos, a (re) descobrir e tecer narrativas que nos conectam enquanto seres humanos em perpétuo movimento. Saravá o invisível!
Paula Nascimento
i Fu-Kiau, Kimbwandènde Kia Bunseki. African cosmology of the BÂNTU-kôngo: Tying the spiritual knot: Principles of life & living. Brooklyn, N.Y: Athelia Henrietta Press, Pub. in the name of Orunmila, 2001.