Exposições

O Tremor e o Terroso

Miguel Afa
31/08 a 21/10/2023

De terra e tremor. De embate com o mundo e com o próprio suporte. Terroso com pés que não sujam. A terra não suja, aterra. Tremor que desloca o que estava dado como fixo, e se abre para um tempo vivido no empenho de buscar algo para além do terror.

Terroso: todos os tons rebaixam. Tudo é da ordem do monumental silêncio. O pincel em estado de tremor, o suporte em estado de tremor. Um jogo contínuo de reescrever o mundo a partir do encontro do corpo com a pintura. Se entenda: do corpo artista com a matéria e a forma. Para além do corpo negro representado, que Miguel Afa desloca em seus mais recentes trabalhos para uma atmosfera da ordem do onírico.

Miguel: “o esgotamento não é sobre a presença do corpo negro. Mas o esgotamento desse corpo, representado a partir das mesmas recorrências e sem complexidade das discussões formais da pintura.” Ou ainda de forma compulsória para um artista negro e sua inserção no sistema contemporâneo de arte branco brasileira.

Um além-imagem fácil e que se projeta para algo que soa ruína, mas é construção. Aliás, do embate entre a natureza e a construção, surgem alguns dos trabalhos dessa mostra. A planta rompe o tijolo. Mas o que está ali em tensão não é a planta, não é o tijolo. É o tempo. O tempo do quintal de chão que se toma de concretos na vontade de construir a vida para uma ideia de melhor. Não há aqui julgamento. Há sim uma negociação entre tempos. E, por vezes, tempos e paisagens ok estarão no mesmo suporte mas em planos distintos, justapostos, penetráveis – posto que tempo pode também ser simultaneidade. Podem ser planos que reunidos e aparentemente em conflito, constroem narrativas. Não há o abandono da narrativa, tão presentes em trabalhos anteriores de Miguel Afa, há sim uma complexidade nova no que vemos.

Conversando com Miguel, ele me dizia: para alguns, o pé que pisa a terra é sujo, para nós, não”. Para alguns, poderia soar que as camadas e sobre camadas de tinta podem soar sujas, para ele não. Para um artista estudioso das histórias da arte, nada é acaso. Fabular a terra nos seus mais diferentes sentidos exigiu desse jovem artista carioca uma relação que passa pela herança da pintura nomeada ocidental, mas que se assinala como inegavelmente brasileira. Creio que a essa altura da carreira de Afa, já não resta dúvida que estamos diante de um dos mais importantes pintores da sua geração. No entanto, quero evidenciar aqui que sua excelência vem do labor diário no tremor dos processos. Miguel é um artista que já superou a fase das ideias que querem parecer o trabalho realizado. Ele sabe que ideia é o início, mas arte é trabalho, labuta diária, busca pela fatura certa que permite surgir a poesia. Afa assegura [ou reitera] constantemente: quero ser relevante. Essa nota mental aponta para um necessário caminho de constante busca. Miguel o faz!

Os atuais tremores como mudança, também vão habitar muitas vezes uma relação nova do artista com o plano de onde surgem suas imagens. Uma poética de termos em tons terrosos que não apresenta escombro, projetando a beleza que mora no menino, em meio à paisagem de mau tempo, ao curvar-se para pegar a pipa. Há voo mesmo quando tudo parece contradizê-lo. Nonada Miguel Afa 2023 Aliás, a pipa na iconografia de Miguel foi entregue na conversa do artista com um grande voador: Emanoel Araújo. Chamado pra pensar esse encontro e a forma, Afa foi entender que uma pipa que voa no céu de CPX também é estrutura geométrica feita de áreas de cor. Daquela conversa entre o jovem Afa e o ancião Araújo, surgem os primeiros movimentos desse pintor com o geométrico e algo de abstração como caminhos possíveis para a poesia e a vida.

Há histórias, mesmo quando uma sucessão de pipas se alinha como exercício de ritmo cromático. Há histórias da arte também. Histórias de uma arte brasileira que passa pela comunidade e que se apresenta pelas mãosmentes de alguns artistas, como o Afa, e que estremecem visões essencializadas do que pode a relação entre um artista e seus territórios. A ideia de que a pintura de Miguel só se explica pela sua origem, só se sustenta se compreendermos também que o mesmo vale para um artista nascido em um bairro de classe média alta. Do contrário, é apenas vício classista de leituras artísticas excludentes.

Numa das pinturas chave dessa nova produção de Miguel, encontramos na galeria da Penha, uma pintura de 3m (?)… nela em que uma sucessão de paisagens se encontram e se desencontram. O que seriam fragmentos se apresenta como uma experiência de paisagem que só pode ser acessada por meio da arte e do domínio da linguagem pictórica. Ali, o tremor e o terroso se unem. A paleta terra assenta a paisagem em tremor. Uma paisagem que nos faz chamar de novo Glissant que em Conversas de Arquipélago (2023), responde a Hans Ulrich Obrist:

“Viva a paisagem com paixão. Retire-a do indistinto, investigue-a, ilumine-a entre nós. Saiba o que significa dentro de nós. Leve para a terra esse claro conhecimento. Se a solução lhe parece difícil, talvez até inexequível, não saia gritando por aí, dizendo que está tudo errado. Não se aproveite do real para justificar seus fracassos. Em vez disso, realize seus sonhos para merecer sua realidade. Enalteça o calor e se fortaleça a partir dele. Seu pensamento arderá.”

É inegável que Glissant e Afa se encontram no tremor e no terroso. Na poesia, na arte e na construção de mundos além do imediato. Mundos e possibilidades que alguns chamaram de utópicos. Mas que em Afa é linguagem, domínio, conhecimento; e uma produção que se move no tempo de um constante amadurecimento na poética de um pintor raro, com pés assentados na terra e ciente de que o tremor é o impulso necessário para fazer voar a pipa.

Igor Simões