Luzes, sim. Sem câmeras, ok. E, correto, temos de concordar: há um tanto de ação, aqui, a espalhar-se pelo espaço expositivo. Em sua primeira exposição individual em uma instituição, Raphael Medeiros (1988), ocupa duas das salas expositivas do Centro Cultural Correios, no Centro do Rio de Janeiro, de modo tanto a nos permitir uma generosa mirada em sua produção artística, realizada nos últimos anos, até aqui; quanto também nos vislumbrar – mirando por entre as frestas ou pela translucidez de seus tecidos diversos, por exemplo – uma considerável parte de sua produção atual, aqui reunida.
É preciso dizer, de antemão, que Medeiros é um artista oriundo do campo do audiovisual, do cinema. Ainda que não seja necessário nos atermos a fronteiras que pouco conectam e tolamente separam, de fato, vertentes artísticas muitas vezes fronteiriças, interseccionadas, fato é que o artista descobriu suas vocações e aspirações do lado de trás das câmeras, nos sets de filmagem e afins, onde desempenhou distintas funções, por anos a fio.
É deste universo que Medeiros foi, pouco a pouco, transportando a sua visão como, por exemplo, diretor de fotografia, para lançar olhares talvez menos abstratos do que a imagem que se forma dentro de uma lente cinematográfica. Inspirado ainda, naturalmente, não apenas pela estética do cinema – aqui onipresente em materiais como rebatedores e difusores de luz, objetos de ferro de distintos tamanhos e formas que ganham contornos escultóricos insuspeitos – como pelas possibilidades de linguagem dele.
Portanto, desde sua primeira exposição, Medeiros, como um artista com uma câmera na cabeça (ou, ao menos, com uma caneta nas mãos para rascunhar um trecho de um possível roteiro), parte de fatos de sua própria vida, em um episódio deveras marcante para o próprio e para a sua família e entes próximos, datado de sua mais tenra infância, de quando, naturalmente, não possui memória alguma, capaz de fazê-lo lembrar.
O fatídico episódio, envolvendo um assassinato, o poder das milícias em territórios socialmente mais vulneráveis (no caso de Medeiros, na cidade de São Gonçalo, no estado do Rio), são todos indícios ora mais aparentes, ora mais opacos, ao passo em que o próprio artista elege a segunda sala expositiva como o território próprio de ser ocupado pela sua primeira série de trabalhos.
Orbitando em torno deste episódio pessoal – através de indícios, vestígios, trechos de depoimentos coletados em fontes judiciais pelo próprio – Medeiros concebe uma espécie de “obra-de-arte-total” (a chamada gesamtkunstwerk, referenciando o famoso termo alemão), em que embebe suas obras de tintas, cores e formas reminiscentes de um passado-presente atribulado, tão vermelho-sangue quanto branco-vazio da memória, junto de inúmeros tons intermediários que auxiliam a conectar os fios soltos de uma cena tão emblemática quanto de efeitos e calibres cinematográficos.
É na primeira sala, no caminho inverso dentro do processo do artista, onde encontram- se os trabalhos mais recentes, onde podemos ver uma prática em constante evolução, não obstante a esbarrar-se com os obstáculos e com os pequenos milagres acontecidos na labuta diária do ateliê do artista. Se, de certo modo, o quase-roteiro, mezzo verídico, mezzo pertencente à imaginação (do próprio artista e de outros tantos agentes involucrados na narrativa pessoal de Medeiros), evoca os limites em que ficção e verdade bailam em uma corda bamba, são também nos trabalhos de Raphael onde conseguimos, também, nos desprendermos de qualquer lastro narrativo.
Ou, melhor e além, superá-lo, ultrapassá-lo, transmutá-lo: suas obras nos convidam a um instante que se passa, de fato, no tempo do aqui e do agora; usualmente são trabalhos que estão a capturar nossos reflexos, a hipnotizar nossas retinas, a ludibriar nossos sentidos em luz, cores e em ação. Nesse espaço expositivo, no entanto, diferentemente de um set de filmagem, a ação está a ser ditada bilateralmente – muitas vezes em silêncio consensual, passivo ou telepático. As obras agem, nós agimos, as histórias permanecem, as histórias fogem, as histórias também se apagam. Da posição, novamente, do início. Mais luzes, sem câmeras, ainda mais em ação.