06/04 - 09/06/24
Texto crítico Renato Menezes
“De diversos pontos de vista, nada parece tanto uma imagem.”
Roger Caillois, Pierres
Amadeu de Lausana, monge cisterciense e douto da igreja católica, escreveu, em algum momento do século XII, alguns comentários ao se dar conta do papel de “alimentar aquele que nos alimenta” desempenhado pela Virgem. Ao se referir à Maria, ele escreveu: “Feliz daquela a quem foi fado [...] aleitar o filho que enche o mesmo peito que ele suga, nutrir aquele que tudo provê e que mesmo aos pássaros concede aquilo que comem!”. No fundo, Amadeu de Lausana se reporta ao milagre vivido por São Bernardo de Claraval, em cuja abadia ele escolheu servir. Foi de lá onde o santo, Doutor da igreja, narrou uma visão extraordinária em que a Virgem, amamentando o menino Jesus (Madonna Lactans), fez jorrar um jato de leite em seus lábios (Lactatio Bernardi). Essa imagem, por seu poder de síntese na associação do leite ao alimento e ao gozo, mas também por recolocar, a seu modo, o problema da aparição das imagens e de sustentação de seus regimes de visibilidade, ganhou repercussão ao longo da história, comparecendo, de maneira instrumentalizada, na Contrarreforma, como instrumento de grande eficácia retórica. É também essa imagem que sedimenta alguns dos elementos-chave que povoam “Cola como leite”, mostra de Matheus Rocha Pitta, na qual o artista faz encontrar alguns trabalhos de fases anteriores de sua carreira com outros produzidos especialmente para a ocasião. De um momento a outro, atravessa uma pesquisa longeva assentada na observação dos meios através dos quais as imagens integram uma substância política, em geral associadas à produção e distribuição do élan da vida, e preservam suas respectivas capacidades de elaboração de sentido sobre si mesma.
O leite-alimento penetrando a boca do santo é metáfora – ou ferramenta conceitual – do procedimento da interrupção – da linguagem pelo milagre –, assunto que o artista vem estudando desde seus primeiros experimentos com as lajes, objetos de cimento produzidos em molde precário, sem fundo, isolado do chão com folhas de jornal que aderem à superfície quando seca. Aqui, leite e cimento se encontram de maneira inesperada. Na interrupção da linguagem, tal como na imagem aderida à massa, reside o mistério – que estimula a imaginação do que vem depois – e a espera – que se encerra no momento da revelação da imagem. Nesse procedimento, a restrição de materiais aos mais comuns de nosso tempo, que finca sua produção no presente imediato, contrasta com a amplitude de se repertório mnemônico.
A observação de como as imagens se formam através da transformação do aspecto da matéria, tônica do trabalho de Matheus Rocha Pitta, foi capturada pelas oferendas à Defunta Correa, figura importante da cultura popular argentina, para a qual inúmeros altares são construídos nas estradas que cruzam a zona desértica em torno da província de San Juan, onde ela deixou a vida em meados do século XIX. Conta-se que seu filho foi encontrado em seus braços ainda com vida, com a boca em seu seio, dias depois de sua morte. Em homenagem à mulher, empilham-se garrafas de plástico cheias de água, evocando o mamilo daquela que garantiu a vida da criança, transformando o nutriente fluido de seu corpo em energia vital. Diferente do episódio da amamentação de Rômulo e Remo pela Loba ou da Alegoria da Misericórdia, figurada na chave do ato generoso de alimentação dos famintos, no caso da Defunta Correa, a amamentação é interrompida logo depois da interrupção da vida e, por consequência, da própria linguagem, condição necessária para a difusão do fato como milagre. Em seu lugar, a construção dos altares em homenagem ao fenômeno promovido pela defunta substitui a linguagem pela mimese do agente do milagre, repetindo os procedimentos adotados pelo artista, a quem cabe, dessa vez – mais uma vez – revelar a imagem. Para isso, nenhum meio é mais adequado que a fotografia, ela também interrupção da passagem do tempo.
A interrupção da passagem do tempo é, talvez, o elemento historicamente mais recente – e urgente – que comparece na coleção de figuras e histórias que Matheus Rocha Pitta mobiliza em sua série de trabalhos. O tema se manifesta através das imagens das mãos que evocam aquelas dos manifestantes do clima que protestam contra o colapso ambiental que vivemos através da fusão de seu corpo na matéria fluida do cimento fresco, em ato de martírio e produção voluntária de relíquia. O gesto do protesto, identificado ao lançamento da pedra – jectare, “atirar para longe”, em latim, gesto similar ao jorro do leite na boca do monge – é substituído, agora, pelo imobilismo cristalizado pelo cimento seco. O gesto político encontra-se, de maneira definitiva, com o gesto religioso, cristão, de produção de testemunho. A imagem ultrapop da calçada da fama dissolve-se melancolicamente enquanto a massa solidifica-se integrando um desejo e uma certeza: o desejo de adiar o fim do mundo e a certeza de seu fim próximo, inconciliáveis.
Em todos os casos, a fricção interminável entre a o desejo de eternidade e o fim certo, metáfora que assumem tanto o leite quanto o cimento, ora de maneira alternada, ora simultânea, está na origem e no destino angustiado do sujeito diante de si mesmo e dos rastros de sua existência na terra – o antropoceno. O impossível, o leite extraído da pedra, é o desafio atribuído à escultura que se adequa com inusitada precisão ao nosso tempo. Diante disso, só nos resta uma pergunta: o que fazer com as imagens, senão aguardá-las de boca aberta?
