06/07 - 28/09/24
Liberdade, independência e emancipação.
Existe uma sutileza, quase um segredo, entre pessoas negras. Em especial, entre nós mulheres negras. Quando somos as únicas em alguns espaços e nossos olhares se encontram, sorrimos umas para as outras. Não sei se acontece em todo encontro, em toda situação, mas algo que vivo e experimento com frequência. Por vezes essa cumplicidade chega como sorriso, mas também se apresenta com outras expressões silenciosas de ternura e reconhecença.
Os tons avermelhados e as cores dessaturadas da pintura de Samara Paiva provocam uma atmosfera de identificação e uma relação de cuidado com o observador. Cada tela, mesmo as menos figurativas, se revelam aos poucos, com gestos calmos e delicados. O olhar percorre a superfície pictórica com a leveza de uma troca de olhares em segredo. Percebemos onde a tinta e o pincel percorreram, formando caminho, textura, pele, tecido e tempo. Um tempo outro, onde toca uma música lenta, onde não se corre de uma tarefa a outra, onde existir e estar ali, presente, respirando e sentindo é mais importante do que as horas do dia. O tempo é de liberdade.
Assim, a pintura não é somente uma lista de itens a ser preenchida, uma descoberta fruto da casualidade onde as cores se reúnem de maneira aleatória, ou ao ritmo de um sistema mercado. Pintura é uma ação política, que acontece de maneira a dar forma e visibilidade a questões de fé, beleza, desejo, invenção e exorcismos de antigas-presentes maneiras de visualidade. June Jordan escreve sobre o quanto a poesia significa tomar o controle da linguagem da própria vida. Nesses termos, a pintura como a de Samara Paiva, é uma retomada e recriação da linguagem que descreve nossas vidas, seus pequenos detalhes, ou o que poderiam ser. Um bom retrato, como uma boa poesia, pode ser reconhecido como um gesto de carinho, leveza e afeto. Quanto mais cotidiana, quanto mais ordinária e simples a tarefa, como lavar o rosto ao acordar, mais lindamente esse gesto pictórico, quase abstrato, resgata a visão de uma vida de beleza e cuidado que também é nossa.
Finalizo a escrita desse texto crítico me imaginando, como muitas vezes já fiz, em uma dessas pinturas. Ouvindo Sade, lendo Toni Morrison e percebendo, cada dia mais, a beleza como método.
Lorraine Mendes