No início dos anos 1980, Lázaro Roberto recebeu uma câmera Minolta com uma lente de 50mm. Ao final da década, ele havia dominado o meio, estabelecendo-se como um dos cronistas mais inovadores da cultura vernacular negra. De festas à comícios de protesto, da moda à vida laboral; através dos olhos de Roberto, o mundo era visto em composições que conjugam tanto seu engajamento social quanto sua sensibilidade empática e mesmo sensual, em seus registros.
O interesse permanente de Roberto pelos cabelos e estilos afro-brasileiros incorpora essas duas formas de olhar: em “Concurso de dança e música reggae no bairro da Ribeira” (Salvador, 1990), o movimento do sujeito é sugerido pelo leve desfoque da imagem, com a camiseta branca do dançarino mesclando-se ao fundo igualmente branco. Os olhos do espectador são atraídos pela vasta cabeleira de longos dreadlocks do frequentador da festa, que se ergue como um redemoinho à medida que ele se entrega à música que claramente está ouvindo. No entanto, há uma seriedade em sua expressão, um leve franzir de testa que sugere que as letras que o movem não são meramente escapistas. Há uma consciência política subjacente, tão presente na obra do fotógrafo – uma prática que nasceu no contexto da virada democrática de Berlim, em 1985, e do papel frequentemente não reconhecido que o ativismo negro desempenhou nesse processo.
Muitos dos retratos de Roberto mostram indivíduos em primeiro plano, à frente de uma multidão; pessoas com personalidades próprias, mas que também fazem parte de uma comunidade mais ampla, que vive e luta e luta para viver. A fronteira entre sujeito e fundo se dissolve, cada um contextualizado dentro de uma paisagem social mais ampla. Isso se torna evidente novamente em “Jovem percussionista participando da Primeira Caminhada da Consciência Negra no Bairro da Liberdade”, em que um músico é retratado de costas, parado ou movendo-se através da multidão, com os cabelos cortados curtos e listras raspadas à navalha a convergirem em sua nuca. No entanto, o corte do jovem percussionista lembra as marcas de guerra tradicionais – as listras de tigre como sinal de alerta –, um embate tornado explícito no slogan estampado na parte de trás da camiseta que veste: “REPARAÇÃO JÁ”.
Em “Rapaz com corte de cabelo Punk Lage”, vemos um jovem sentado na cadeira do barbeiro com seu penteado afro recém-cortado no estilo “Flat Top” (ou, em inglês, “flattop”, como este corte é comumente chamado na língua). No retrato, ele encara diretamente a lente com um olhar atento, metade do rosto mergulhado na sombra, como se avaliasse o trabalho do barbeiro no espelho. Assim como na obra do fotógrafo nigeriano J.D. ‘Okhai Ojeikere, Roberto presta homenagem à arte do barbeiro e reconhece a barbearia como um espaço social negro, onde o cabelo recebe tempo e respeito; um símbolo de excelência e integridade negras. A partir do olhar frontal do sujeito, o espectador torna-se seu reflexo – um aceno para o fato de que, para Roberto, seus retratados eram predominantemente negros, assim como seu público. No entanto, sua fotografia circulava dentro de uma economia que o Brasil não soube valorizar.
O olhar de negro para negro permeia sua obra: o título da exposição, “Lente Negra”, vem do apelido que Roberto carrega há décadas; mas também identifica o olhar a partir do qual essas imagens são captadas. Corpos e culturas são retratados sem a hierarquia interpretativa – muitas vezes exploratória – que sustenta grande parte da fotografia documental produzida por autores brancos e voltada para um público branco. Em português, uma fotografia se “tira”; em inglês, o ato pode ser ainda mais violento – “capturar” (“capture”) a imagem –, mas nenhuma destas palavras parece adequada para Roberto. Por muito tempo, essas imagens não foram retiradas da comunidade onde foram criadas, mas se juntaram ao trabalho de outros fotógrafos negros. O Zumvi Arquivo Fotográfico, coletivo que o fotógrafo fundou junto com Raimundo Monteiro e Aldemar Marquês em meados da década de 1990, em Salvador, hoje conta com 30 mil itens, incluindo materiais físicos e digitais (fotografias, documentos, cartazes e objetos pessoais). Essas imagens não são sobre a identidade negra, mas são, sim, nascidas dela.
Em mãos menos empáticas, por exemplo, os corpos negros musculosos e reluzentes retratados na série “Estúdio Corpos”, poderiam correr o risco de um impulso fetichista; no entanto, Roberto se inclina para o fetiche, e os homens – com suas cabeças inclinadas para trás e peitos estufados – posam e criam sua própria imagem, incorporando super-heróis, figuras clássicas do afrofuturismo. Da mesma forma, “Negros ou Vendedor de temperos da feira de São Joaquim”, apresenta o torso esculpido de um homem, seu peito e braços adornados com múltiplas correntes e pulseiras; a parte superior de seu rosto, cortada do enquadramento. Apesar do anonimato, Roberto confere ao sujeito uma imensa agência: suas joias são um símbolo de sucesso e confiança, e a imagem se conecta às tradições da fotografia de estúdio do continente africano. Sua riqueza implode o clichê fotográfico, de viés branco, sobre a representação negra; o sujeito assume o poder da fotografia, incorporando-o tanto quanto Roberto, o homem por trás da câmera.