Exposições

Interdum precor pro fine mundi; Às vezes rezo pro mundo acabar

Bertô
31/01/25 - 30/04/25






A insustentável e complexa leveza do ser quando em suspensão onírica

Dentre muitos de seus desentendimentos, os campos da ciência e da religião, sabemos bem, nunca chegaram, até os dias de hoje, a um consenso completo acerca do abstrato conceito daquilo que chamamos de “realidade”. Experimentos e futuros psicodélicos, abstratos e menos cartesianos à parte, tal dicotomia nos induz à uma deliciosa inflexão propícia para reflexões quase infindas e deliciosamente profundas tal qual o fundo dos oceanos ou, vá lá, o espaço sideral.

Se a humanidade - por sorte, diria este que escreve, em uma humilde e vã opinião – não se atreveu ainda a acessar campos desconhecidos de seus cérebros capazes de nos levar fisicamente às maiores distâncias abissais ou cósmicas, talvez a arte (e o poder dos sonhos, na melhor calibragem de funcionamento à la um combustível infalível) podem sim nos aproximar, ao menos, destes territórios tão obscuros quanto iluminados. Se desconhecidos, acachapantemente interessantes e gozosos, frutíferos. A disneylândia do artista e do flâneur não afeito à grandes invenções tecnológicas. Inteligência artificial para que se, afinal, não há nada mais abstrato do que a própria realidade?

As palavras acima, um statement incontornável e inesquecível do pintor italiano Giorgio Morandi, em palavras de ressoam feito música (experimental ou ambient music, o visitante pode escolher sua trilha favorita) no espaço expositivo que acolhe a primeira exposição individual do artista Bertô (São Paulo, 1992), em Salvador. Interdum precor pro fine mundi; às vezes eu rezo pro mundo acabar, título eleito pelo artista para batizar o conjunto de obras – em sua vasta maioria inéditas, realizadas para a presente ocasião – evoca um certo tremor kafkiano, típico daqueles sentidos por um artista que, à revelia de um mundo conectado com aquilo que lhe parece tangente, palpável e terreno, busca em seus sonhos a matéria prima para seus trabalhos.

Dividida em duas salas, a exposição não apenas ilumina (com intensidades oscilantes de lúmens, elétricos, de fato, estes que saem dos objetos que chamamos “lâmpadas”, a penderem do teto do espaço onde nos encontramos reunidos) a produção recente do artista paulista, tanto no campo da pintura quanto em seus desenhos mas deflagra, de fato, eixos temáticos, interesses e campos de pesquisa por vezes pouco usuais e conformistas, nutridos pelo artista em sua prática de cerca de uma década de produção.

Bertô coloca-se, aqui, como um arqueólogo de sonhos: de seus próprios, de entes próximos e de outros artistas e/ou parceiros em grupos de discussão, debate e experimentação mútua de caminhos espirituais. O latim no título poderia até ofuscar a dimensão quase violenta – impactante, no mínimo – do título escolhido pelo artista. No entanto, uma perscrutação mais ou menos aprofundada, a ser realizada pelos visitantes que aqui encontram-se, pelas duas salas da mostra, revelam uma espécie de paradoxo, onde a ideia do “mundo acabar” revela-se bem menos carregada de tintas apocalípticas e um tanto mais delineada por paletas de cores um tanto delicadas, leituras sensíveis e frequentemente enigmáticas, onde qualquer ideia tola de divisão entre as denominações de “figuração” e “abstração” velozmente caem por terra.










Ou, melhor, suspendem-se acima de nossas cabeças – ainda que não tão distante delas. Como se regressassem ao âmago de nossos cérebros e, é claro, do cérebro do próprio artista, somos convidados a caminhar em passos lentos e com olhos afiados por um percurso onírico, deveras íntimo e sabidamente transposto do campo psíquico para a superfície da tela, do linho, do papel ou de qualquer outro suporte similar. Por entre o usual burburinho causado pela presença robusta de visitantes que gentilmente prestigiam a exposição de um artista - a conversarem, afoitos e felizes, especialmente na noite de abertura de sua mostra - logo percebe-se um indelével pedido de silêncio feito pelas obras de Bertô. Não em um tom mal-educado ou ofensivo.

Seus animais, suas figuras, casas, caminhos, abstrações e tantas de suas formas talvez não interpretáveis por nós - seres de pés fincados no chão por força da gravidade e pela obediência pedida pela tal “realidade” que partilhamos - desnudam nossos olhos ao passo em que mantêm-se completamente vestidas. Nós corremos o risco de entrarmos em estado de delírio, apneia ou sono profundo. Os habitantes das telas aqui expostas não devem ser desafiados: pertencem a um universo um tanto mais livre, fugaz, prenhe de possibilidades insanas e insuspeitas, brutais e violentas, belas e explosivas; territórios possíveis- impossíveis que apenas os sonhos são capazes de criar.


 

Victor Gorgulho